"...Mas o quociente de dor que a gente sofre já não é chocante o bastante para não precisar de uma amplificação ficcional, que dê às coisas uma intensidade que é efêmera na vida e que por vezes chega a passar despercebida? Não para algumas pessoas.
Para umas poucas, muito poucas, essa amplificação, que brota do nada, insegura, constitui a única confirmação, e a vida não vivida, especulada, traçada no papel impresso, é a vida cujo significado acaba sendo mais importante..." (Philip Roth, Fantasma Sai de Cena).

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Uma balança e algumas idiossincrasias

Estava em um café, dentro de um supermercado. À frente havia uma dessas balanças eletrônicas. Enquanto esperava o pão-de-queijo sair do forno, observei por dez minutos as pessoas subindo e descendo naquela balança. Notei o quão diferentemente cada indivíduo reagiu diante daquele objeto inanimado...Idiossincrasias do cotidiano.

A primeira vítima de minha observação foi uma mulher que calçava sandálias de um solado mínimo, que se prendiam aos pés por tiras finíssimas. Ao subir na balança, executou um ato maquinal: descalçou as sandálias...

Fiquei meditando: afinal, quantos gramas seriam diminuídos, na pesagem daquele corpo (cuja massa parecia adequada à estrutura), com a simples subtração do peso irrisório de sandálias escassas? A que ponto essa diferença era importante para dona das sandálias?

Em seguida, houve duas mulheres, na faixa dos cinquenta anos. Supus que fossem irmãs. A primeira delas foi direto à balança. Desapontou-se certamente com a pesagem. Deixou isso transparecer em suas feições e, em um ato bastante previsível, disse à irmã: “vai você também! aproveita que hoje você está com uma roupa bem levinha...” A segunda irmã, contrariada, subiu na balança e desapontou-se igualmente. Com isso, porém, satisfez intimamente a irmã que se frustrara por primeiro ...

Houve também um rapaz de bermudas e regata, com uma mochila pendurada. Olhou para o visor da balança e piscou lentamente os olhos, em desaprovação. Mas a razão do desapontamento do jovem pareceu-me diversa da razão da dupla de irmãs. Estas desejavam números menores no visor; aquele, provável frequentador de um academia de musculação das proximidades, desejava números maiores...

Figura singular compôs uma senhora de idade já avançada, que, desconfiada da precisão da balança a seus pés, pressionou e apalpou cada centímetro do aparelho, procurando por botões imaginários que subtraíssem alguns gramas da pesagem...

Lembro-me também de duas adolescentes que subiram na balança da forma mais discreta e rápida possível. Não esboçaram a mínima alteração na fisionomia ao verificarem no aparelho o resultado de seus estilos de vida. Desceram e seguiram seus caminhos no mesmo passo rápido com que cruzavam pela entrada do supermercado.

Por fim,observei um senhor de cabelos tingidos, por volta dos sessenta anos, que subiu na balança mas nem soube do resultado.

Ele apenas se posicionou sobre ela para poder observar, sem parecer indiscreto demais, uma senhora que teve problemas com o aparelho antifurto posicionado à saída do supermercado.

Camuflado, do topo daquele barômetro do ego, o senhor dos cabelos tingidos contemplava as reações da pobre mulher que se debatia contra o apito dos aparelhos acusadores... Na contemplação do espetáculo absurdo, do qual era ele espectador, o senhor dos cabelos tingidos nunca imaginaria que seria, também e ao mesmo tempo, protagonista de outra ação, sendo que desta era eu o espectador...