"...Mas o quociente de dor que a gente sofre já não é chocante o bastante para não precisar de uma amplificação ficcional, que dê às coisas uma intensidade que é efêmera na vida e que por vezes chega a passar despercebida? Não para algumas pessoas.
Para umas poucas, muito poucas, essa amplificação, que brota do nada, insegura, constitui a única confirmação, e a vida não vivida, especulada, traçada no papel impresso, é a vida cujo significado acaba sendo mais importante..." (Philip Roth, Fantasma Sai de Cena).

domingo, 27 de dezembro de 2009

Desejos de ano novo – A ave sai do ovo – Parte II

Sinclair era ainda criança, quando deu por conta da existência de dois mundos: o luminoso, protegido e sacro – encerrado no ambiente familiar; e o pecaminoso, fascinante e proibido – além dos muros da casa paterna. Na infância em que fizera essa descoberta, conheceu Demian, que embora fosse apenas poucos anos mais velho, passou a ser-lhe guia e referencial de evolução.

A partir dos contatos com Demian, Sinclair iniciou seu processo de abandono do mundo luminoso e protegido da infância na casa paterna. Esse abandono – que fora permitido, dentre outras coisas, pela constatação de que o puro e o impuro são componentes igualmente essenciais da natureza humana – permitiu a Sinclair conhecer a si mesmo.

Sinclair terminou o colégio e separou-se de Demian. Passou então a trilhar sua jornada com solidão e sofrimento.

Mas só assim, recluso e solitário, Sinclair pode desgarrar-se paulatinamento do “mundo luminoso”, e afastar-se dos integrantes desse mundo ideal (que, em um sentido amplo, transcendia o núcleo protegido da família, e compreendia todo rebanho de pessoas tangidas pelos valores arbitrariamente escolhidos pela religião e pela sociedade burguesa).

Ao fim desse processo de desgarramento, o jovem sai da adolescência com uma maturidade e um autoconhecimento que iriam lhe distinguir para o resto da vida (“o sinal de Caim”).

Disso trata “Demian”: de um abandono do confortável como meio necessário ao crescimento pessoal; de uma superação do ideal de “paraíso perdido” da infância como doloroso requisito ao autoconhecimento; de uma necessidade de libertação dos mestres e dos pais para atingir a evolução pessoal (estes simbolizando não só a autoridade, mas também os valores estabelecidos e a orientação à integração incondicional à vida coletiva, a orientação à despersonalização).

Daí por que a metáfora que transpassa o livro está encerrada na frase enviada por Demian a Sinclair

“A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo”.

A ave apenas logra viver se consegue romper a casca do mundo confortável em que foi gestada. Apenas pela destruição desse mundo luminoso e confortável pode a ave cumprir com seu destino: crescer e voar.

O ano termina, e ler Demian me fez pensar em quanto buscamos o conforto e a tranquilidade em uma vida ideal, na qual possamos gozar de um conforto semelhante àquele vivido no paraíso perdido da infância, ou talvez vivido antes disso, na proteção incondicional do útero materno. Nossa casca de ovo.

Mas penso também que para atendermos ao chamado de nossa natureza particular e única, e cumprir o nosso destino – que é conhecermos a nós mesmos –, é realmente necessário deixar para trás o ideal de retorno ao acolhimento materno, e destruir os laços remanescentes com esse mundo protegido.

Para cumprimos com nossa natureza, é preciso abandonar por completo o que nos impede de sermos indivíduos únicos (e assim nos impede o mundo protegido), e aceitar a solidão o sofrimento que possam ser necessários para se autoconhecer.

Embora essencialmente não acredite em resoluções de final de ano – porque datas não mudam indivíduos –, para 2010 desejo a quem quer que leia esse post, e sobretudo a mim mesmo, a força para abandonar a nossa casca de ovo, e viver como se é no mundo que surgir depois.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Desejos de ano novo – A ave sai do ovo – Parte I

Estava dormindo. Adormeci lendo “Demian”, do Hermann Hesse. É meu livro de final de ano. Recordo do último livro de final de ano que definitivamente influenciou o ano que veio a seguir: foi “O homem comum”, do Philip Roth, lido em dezembro de 2007.

Desperto e observo não lembrar de qualquer sonho tido durante o breve sono vespertino. Estranho esse fato. Pois, há tempos sei da importância dos sonhos. Minhas mensagens dissimuladas do inconsciente.

E me tem sido caro e fundamental – embora já tenha sido mais outrora– tomar consciência das coisas trancafiadas no poço escuro do inconsciente. Principalmente dos desejos inconscientes, aqueles mais essenciais e que definem o caminho a seguir. O caminho para se conhecer e ser verdadeiramente quem se é.

Muito bem, “Demian” vai ser lido em quatro dias. O impulso começou na quinta-feira e vai dar cabo ao livro amanhã, domingo.

Mas depois de dar cabo ao livro, o impulso vai continuar vivendo em mim, só que diferente.

Vai ser o impulso transformado pelas palavras de Hesse. Um impulso original e próprio de meu ser inconsciente, mas que estará para sempre acrescido e potencializado pela força das palavras de “Demian” – meu livro de final de ano mais significativo até agora.

Como dito, ainda não terminei a leitura, mas ela já me trouxe até aqui, para a escrita desse post.

Amanhã, quando terminar o livro, completo esse texto. E direi sobre desejos de ano novo, e sobre o pássaro que sai do ovo, e sobre um mundo que é preciso destruir...