"...Mas o quociente de dor que a gente sofre já não é chocante o bastante para não precisar de uma amplificação ficcional, que dê às coisas uma intensidade que é efêmera na vida e que por vezes chega a passar despercebida? Não para algumas pessoas.
Para umas poucas, muito poucas, essa amplificação, que brota do nada, insegura, constitui a única confirmação, e a vida não vivida, especulada, traçada no papel impresso, é a vida cujo significado acaba sendo mais importante..." (Philip Roth, Fantasma Sai de Cena).

sábado, 21 de setembro de 2013

O cortador de grama

O cortador de grama

Uma janela grande. Duas persianas horizontais de plástico; uma abaixada completamente, a outra, levantada, deixando cerca de dois terços de visão para o lado de fora. Estou sentado na cama, vejo folhas de um verde fresco em um galho de árvore que se projeta do pátio vizinho em direção à rua – lembro de ter visto essa árvore no inverno, com suas grandes folhas de um marrom quase dourado; não conheço sua espécie, mas gosto de pensar que é um plátano, porque gosto da sonoridade desse nome. Hoje o verde é fresco, talvez porque tenha chovido há pouco, talvez porque a primavera deve começar em alguns dias – ao menos no calendário. O tempo ainda tem dias chuvosos, cinzas e frios, como ocorreu na maior parte desse inverno longo e difícil. Voltei de uma viagem agradável e cai no meio desse inverno impiedoso – aliás, mais um elemento de estranhamento, porque às vezes sinto não pertencer a esse clima frio, chuvoso e úmido. Enfim, as folhas dessa árvore tem esse frescor primaveril, e o sol que sucedeu a chuva de mais cedo brilha claro lá fora, tornando completamente azul o céu que figura no fundo desse quadro emoldurado pela janela semiaberta. Há um murmúrio vindo da rua e dos pátios vizinhos. O som de um compressor d'água ou de um cortador de grama convida pra sair à rua, onde a vida está acontecendo em seus eventos prosaicos: um jovem lava o carro do pai, um outro apara o gramado.

Lembro de quando era jovem, e também tinha a incumbência de cortar a grama de nosso jardim. Era algo desagradável: um trabalho verdadeiramente braçal e difícil, em especial pelo péssimo estado do cortador de grama, que devia pesar mais do que eu à época, tinha quatro rodas plásticas endurecidas que o tornavam praticamente incontrolável, e era bastante ineficiente. Era, além de tudo, de um barulho exagerado. Penso vagamente que não tenho mais obrigações braçais dessa natureza, mas tenho obrigações muito mais exaustivas, como se cada dia acordasse para conduzir um cortador invisível de grama, me movimentando de forma arrastada e pesada por entre gramados gigantes, constantemente atordoado por um barulho que não sei de onde vem, incomodado com a poeira no olhos, parando aos poucos e arrancando algumas ervas daninhas com a mão, e sempre pensando em quanto falta pra terminar a tarefa do dia e finalmente descansar. Não sentia prazer em cortar grama àquele tempo; e agora também só penso no frescor primaveril das folhas desse plátano, cujo verde me convida pra caminhar sem rumo, por entre caminhos ensolarados e sob um céu azul e cálido.

Não vou. O cortador de grama me espera.