Sinclair era ainda criança, quando deu por conta da existência de dois mundos: o luminoso, protegido e sacro – encerrado no ambiente familiar; e o pecaminoso, fascinante e proibido – além dos muros da casa paterna. Na infância em que fizera essa descoberta, conheceu Demian, que embora fosse apenas poucos anos mais velho, passou a ser-lhe guia e referencial de evolução.
A partir dos contatos com Demian, Sinclair iniciou seu processo de abandono do mundo luminoso e protegido da infância na casa paterna. Esse abandono – que fora permitido, dentre outras coisas, pela constatação de que o puro e o impuro são componentes igualmente essenciais da natureza humana – permitiu a Sinclair conhecer a si mesmo.
Sinclair terminou o colégio e separou-se de Demian. Passou então a trilhar sua jornada com solidão e sofrimento.
Mas só assim, recluso e solitário, Sinclair pode desgarrar-se paulatinamento do “mundo luminoso”, e afastar-se dos integrantes desse mundo ideal (que, em um sentido amplo, transcendia o núcleo protegido da família, e compreendia todo rebanho de pessoas tangidas pelos valores arbitrariamente escolhidos pela religião e pela sociedade burguesa).
Ao fim desse processo de desgarramento, o jovem sai da adolescência com uma maturidade e um autoconhecimento que iriam lhe distinguir para o resto da vida (“o sinal de Caim”).
Disso trata “Demian”: de um abandono do confortável como meio necessário ao crescimento pessoal; de uma superação do ideal de “paraíso perdido” da infância como doloroso requisito ao autoconhecimento; de uma necessidade de libertação dos mestres e dos pais para atingir a evolução pessoal (estes simbolizando não só a autoridade, mas também os valores estabelecidos e a orientação à integração incondicional à vida coletiva, a orientação à despersonalização).
Daí por que a metáfora que transpassa o livro está encerrada na frase enviada por Demian a Sinclair
“A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo”.
A ave apenas logra viver se consegue romper a casca do mundo confortável em que foi gestada. Apenas pela destruição desse mundo luminoso e confortável pode a ave cumprir com seu destino: crescer e voar.
O ano termina, e ler Demian me fez pensar em quanto buscamos o conforto e a tranquilidade em uma vida ideal, na qual possamos gozar de um conforto semelhante àquele vivido no paraíso perdido da infância, ou talvez vivido antes disso, na proteção incondicional do útero materno. Nossa casca de ovo.
Mas penso também que para atendermos ao chamado de nossa natureza particular e única, e cumprir o nosso destino – que é conhecermos a nós mesmos –, é realmente necessário deixar para trás o ideal de retorno ao acolhimento materno, e destruir os laços remanescentes com esse mundo protegido.
Para cumprimos com nossa natureza, é preciso abandonar por completo o que nos impede de sermos indivíduos únicos (e assim nos impede o mundo protegido), e aceitar a solidão o sofrimento que possam ser necessários para se autoconhecer.
Embora essencialmente não acredite em resoluções de final de ano – porque datas não mudam indivíduos –, para 2010 desejo a quem quer que leia esse post, e sobretudo a mim mesmo, a força para abandonar a nossa casca de ovo, e viver como se é no mundo que surgir depois.
domingo, 27 de dezembro de 2009
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Adorei esse post! Instiga nos leitores a vontade de ler o livro e mais, a sair da sua casca de ovo e se abrir a esse novo mundo. Viver tem de ser perturbador...
ResponderExcluirDrummond diz: "é dentro de você que o Ano Novo colhila e espera desde de sempre"
Até o próximo post!
A ave voa pra deus. E o deus se chama Abraxas !
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