"...Mas o quociente de dor que a gente sofre já não é chocante o bastante para não precisar de uma amplificação ficcional, que dê às coisas uma intensidade que é efêmera na vida e que por vezes chega a passar despercebida? Não para algumas pessoas.
Para umas poucas, muito poucas, essa amplificação, que brota do nada, insegura, constitui a única confirmação, e a vida não vivida, especulada, traçada no papel impresso, é a vida cujo significado acaba sendo mais importante..." (Philip Roth, Fantasma Sai de Cena).

quarta-feira, 31 de julho de 2013

O Estrangeiro: cinismo e libertação.

Em o estrangeiro, de Camus, o protagonista Meursault é um homem indiferente aos sentimentos mais ordinários do homem-comum, e isso fica claro na cena inicial, em que não se comove minimamente com a morte da própria mãe. No avançar, vê-se que o estrangeiro não se choca com a mesquinhez de um seu vizinho; não se importa com a imoralidade de um outro.

Parece alguém completamente alheio ao que é prezado e cultuado por consenso: a família, a religião, os bons costumes. Vive como um estrangeiro não apenas em sua própria cidade, mas no seio de sua família, entre seus conhecidos...

Por colocar-se à margem do que é comum, lembra a filosofia dos cínicos (kinikós) – que tinham esse nome porque viviam como cães, kynós –: Meursault é um cão, que vive por instinto e não por opção, e que se se comove é apenas com o que há na natureza (phýsis). Difere dos cínicos porque seu distanciamento não parece consciente. Antes parece ser resultado de longa e gradual perda de valores morais e de uma crescente indiferença ao mundo comunitário.

O mais impressionante, contudo, é que esse distanciamento e esse despojamento não o desumanizam.

Pelo contrário, tem-se a impressão de que ele, desinvestido de qualquer valor moral, torna-se o verdadeiro homem, aquele que vive para si e não se comove com nada, porque sabe que nada é importante, porque nada faz sentido.

Há um pessimismo indiscutível, mas há também um golpe intenso sobre o espírito do homem-comum, que o faz por primeiro encolher-se de dor como quem acorda a socos de um sono profundo, e por segundo cogitar que a morte pode não ser a única libertação.