"...Mas o quociente de dor que a gente sofre já não é chocante o bastante para não precisar de uma amplificação ficcional, que dê às coisas uma intensidade que é efêmera na vida e que por vezes chega a passar despercebida? Não para algumas pessoas.
Para umas poucas, muito poucas, essa amplificação, que brota do nada, insegura, constitui a única confirmação, e a vida não vivida, especulada, traçada no papel impresso, é a vida cujo significado acaba sendo mais importante..." (Philip Roth, Fantasma Sai de Cena).

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Sauntering


Gosto de tomar livros à biblioteca alheia. Dia desses, manhã ociosa de domingo, mão estendida à estante que não era minha, veio dar-me à vista o clássico “A Desobediência Civil”, publicado pela Martin Claret em reunião com “Outros Textos” de Thoreau. Pulei o ensaio principal – não era texto para uma manhã de domingo – e fui ao texto anexo “Andar a pé”, no qual Thoreau discorre sobre a arte do sauntering.

Para ser preciso, acompanho o autor:

“(...) sautering, palavra esplendidamente derivada de “pessoas vadias que erravam pelo país, na Idade Média, e pediam esmola sob o pretexto de irem à la Sainte Terre, à Terra Santa. Eram tão conhecidos, que até as crianças exclamavam 'lá vai um SainteTerrer', um 'Saunterer', um da Terra Santa. (…) Alguns por certo derivariam a palavra de sans terre, sem terra ou pátria, o que, por conseguinte, no bom sentido, significará – não tendo pátria determinada, todo lugar pode ser sua pátria. (…) Entendo a primeira como sendo a derivação mais acertada, já que toda caminhada é uma espécie de cruzada...”. (fl. 42).

Thoureau tinha um jeito de viver tão extremo e diferente, com práticas e aptidões tão inusitadas (… morar no mato, viver quase sem dinheiro, alimentar-se o mínimo e com o básico etc... - vide Walden), que nos faz pensar se o nosso modo de vida, socialmente aceito (ou imposto?), realmente é o correto.

Sauntering, tirando a interessante origem da palavra, nada mais é do que vagar a esmo, em algum campo ou mato, sem qualquer pensamento urbano na cabeça. Alguém que faça isso hoje em dia, depois de um dia de trabalho, correria risco de ser interditado pela família.

Mas se praticar sauntering não é uma daquelas ideias práticas, não deixa de forçar uma reflexão sobre estilo de vida de vida, já que cada vez mais se oscila entre um sedentarismo crônico e atividades de lazer pouco relaxantes (p. ex. viajar para praias lotadas, após dirigir por horas emestradas engarrafadas...).

Pena que a combinação de reflexão crítica com o desejo de viver melhor não sejam suficientes para a mudança: essa mistura, para fazer o motor da ação funcionar, ainda carece de uma faísca de iniciativa, coisa que geralmente se tem tarde demais.

Thoreau, entre justificar racionalmente o não pagamento de tributos (em a "A desobediência Civil"), exaltar caminhadas a esmo ("Andar a pé") e defender um estilo de vida que beira a misantropia ("Walden"), pinta o quadro de sua existência com cores tão fortes que nos obriga a pensar que nossa vida, se pintada fosse, teria tintas demasiado desbotadas...