Em o
estrangeiro, de Camus, o protagonista Meursault é um homem
indiferente aos sentimentos mais ordinários do homem-comum, e
isso fica claro na cena inicial, em que não se comove
minimamente com a morte da própria mãe. No avançar,
vê-se que o estrangeiro não se choca com a mesquinhez de um
seu vizinho; não se importa com a imoralidade de um outro.
Parece
alguém completamente alheio ao que é prezado e cultuado
por consenso: a família, a religião, os bons costumes.
Vive como um estrangeiro não apenas em sua própria
cidade, mas no seio de sua família, entre seus conhecidos...
Por
colocar-se à margem do que é comum, lembra a filosofia
dos cínicos (kinikós) – que tinham esse nome
porque viviam como cães, kynós –: Meursault é
um cão, que vive por instinto e não por opção,
e que se se comove é apenas com o que há na natureza (phýsis).
Difere dos cínicos porque seu distanciamento não parece
consciente. Antes parece ser resultado de longa e gradual perda de
valores morais e de uma crescente indiferença ao mundo
comunitário.
O mais
impressionante, contudo, é que esse distanciamento e esse
despojamento não o desumanizam.
Pelo
contrário, tem-se a impressão de que ele, desinvestido
de qualquer valor moral, torna-se o verdadeiro homem, aquele que vive
para si e não se comove com nada, porque sabe que nada é
importante, porque nada faz sentido.
Há
um pessimismo indiscutível, mas há também um
golpe intenso sobre o espírito do homem-comum, que o faz por
primeiro encolher-se de dor como quem acorda a socos de um sono
profundo, e por segundo cogitar que a morte pode não ser a
única libertação.