"...Mas o quociente de dor que a gente sofre já não é chocante o bastante para não precisar de uma amplificação ficcional, que dê às coisas uma intensidade que é efêmera na vida e que por vezes chega a passar despercebida? Não para algumas pessoas.
Para umas poucas, muito poucas, essa amplificação, que brota do nada, insegura, constitui a única confirmação, e a vida não vivida, especulada, traçada no papel impresso, é a vida cujo significado acaba sendo mais importante..." (Philip Roth, Fantasma Sai de Cena).

sábado, 2 de agosto de 2014

Boko Haram e Justiça Distributiva

Olho pela janela e vejo um vale silencioso, sobre o qual sobrevoam pássaros igualmente silenciosos, e acima destes nuvens que se expandem e se dissolvem vagarosamente em um fundo azul. A vida parece calma e pacífica. Mas sob esse mesmo céu, nesse exato momento, 219 meninas nigerianas completam hoje 3 meses e 17 dias na condição de sequestradas. Enquanto contemplo essa paisagem bucólica, elas estão sob o poder do grupo terrorista Boko Haram, que as sequestrou de um colégio, na noite do dia 15 de abril.

O evento é conhecido, tendo gerado comoção mundial. Há campanhas na internet (https://www.facebook.com/bringbackourgirls), os EUA enviaram 80 soldados para auxiliar nas buscas; o presidente Goodluck Jonathan se reuniu com as famílias das vítimas. As medidas tomadas, contudo, não afastam o fato concreto de que as adolescentes continuam desaparecidas.

Por que eu estou aqui, confortavelmente sentado em minha sacada com vista para o vale, enquanto elas estão sendo submetidas sabe-se lá a que atrocidades?

Considerando-se que não há qualquer sentido racionalmente demonstrável para a completa aleatoriedade da vida, possivelmente a maioria das respostas a essa pergunta será baseada em alguma relevação mística ou religiosa.

Respostas religiosas, com efeito, são fáceis, justamente porque não precisam ser justificadas racionalmente. Dizer que um deus qualquer distribuiu a cada pessoa quinhões diversos de alegria e de tristeza terrenas – os quais serão igualados apenas numa partilha pós-morte – é uma resposta baseada numa premissa incomprovável, qual seja, a existência dessa divindade.

Só para citar um dos críticos da crença religiosa, Freud, em O futuro de uma ilusão, destrincha muito bem as origens psicológicas do anseio da humanidade por acreditar em alguma força sobre-humana (mas que, não coincidentemente, na maior parte das vezes tem uma feição humana paternal: Zeus, Jesus, Moisés, Maomé etc...). É difícil não respeitar, pela racionalidade, a maioria dos argumentos expostos nessa obra.

Um dos motivos do êxito das religiões, em especial das cristãs, é incutir nas pessoas a ideia de que as injustiças da vida terrena serão compensadas no reino dos céus. Com isso, todo o fracasso e toda a desilusão são amenizados por essa expectativa de um dia serem compensados pela glória da comunhão com uma divindade.

Sem falar que a angústia imensa da finitude humana também é compensada por esse cheque pré-datado da vida além-túmulo, a ser pago por um sacado imaginário que dirige um banco que ninguém nunca viu.

Para os que entendem que a razão deve fundamentar as respostas aos problemas da humanidade, resta concluir apenas pela total falta de uma causa metafísica que dê origem ou explique crimes abomináveis como este praticado contra as adolescentes nigerianas (dentre tantos outros).

Se essa certeza nos priva do consolo religioso – e nos põe na situação desconfortável de saber que a morte é o fim de tudo, e que se aproxima a cada segundo –, ela, por outro lado, nos torna mais solidários. E falo em uma solidariedade racionalmente justificada, não aquela imposta goela abaixo por dogmas religiosos.

Explico: quando nos damos conta de que aquilo que possuímos hoje é resultado de uma combinação de mérito pessoal com fatores completamente aleatórios e alheios a nós (local de nascimento, família, condições econômicas, etc...), nos obrigamos a concluir, pela coerência, que a noção de justiça baseada unicamente no mérito pessoal não pode se sustentar, e que é necessário adotar uma noção de justiça distributiva, que compense as desigualdades impostas pela natureza e pelas sociedades aos indivíduos.

Ou seja, o que consideramos justo não pode se basear unicamente no mérito ou demérito pessoal dos indivíduos, pois não existe mérito ou demérito que não seja produto, inclusive, de circunstâncias que não foram escolhidas pelo sujeito.

Parece simples em teoria, mas, na prática, a questão da justiça distributiva permeia questões altamente controversas na nossa sociedade – como impostos para grandes fortunas; cotas nas universidades e no serviço público; etc.

Parte da sociedade rechaça a noção de justiça distributiva porque, para defender interesses próprios, se agarra à noção meritocrática; e parte da sociedade, embora pudesse se beneficiar de uma noção de justiça distributiva, não a encampa porque só tem olhos para aquela justiça divina prometida pelas religiões, tão bem ilustrada no sermão de montanha: “Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados; Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra” (Evangelho de Mateus, capítulo 5).