Olho pela janela e vejo um vale
silencioso, sobre o qual sobrevoam pássaros igualmente silenciosos,
e acima destes nuvens que se expandem e se dissolvem vagarosamente em
um fundo azul. A vida parece calma e pacífica. Mas sob esse mesmo
céu, nesse exato momento, 219 meninas nigerianas completam hoje 3
meses e 17 dias na condição de sequestradas. Enquanto contemplo
essa paisagem bucólica, elas estão sob o poder do grupo terrorista
Boko Haram, que as sequestrou de um colégio, na noite do dia 15 de
abril.
O evento é conhecido, tendo gerado
comoção mundial. Há campanhas na internet
(https://www.facebook.com/bringbackourgirls), os EUA enviaram 80
soldados para auxiliar nas buscas; o presidente Goodluck Jonathan se
reuniu com as famílias das vítimas. As medidas tomadas, contudo,
não afastam o fato concreto de que as adolescentes continuam
desaparecidas.
Por que eu estou aqui, confortavelmente
sentado em minha sacada com vista para o vale, enquanto elas estão
sendo submetidas sabe-se lá a que atrocidades?
Considerando-se que não há qualquer
sentido racionalmente demonstrável para a completa aleatoriedade da
vida, possivelmente a maioria das respostas a essa pergunta será
baseada em alguma relevação mística ou religiosa.
Respostas religiosas, com efeito, são
fáceis, justamente porque não precisam ser justificadas
racionalmente. Dizer que um deus qualquer distribuiu a cada pessoa quinhões diversos de alegria e de tristeza terrenas – os quais serão
igualados apenas numa partilha pós-morte – é uma resposta baseada numa
premissa incomprovável, qual seja, a existência dessa divindade.
Só para citar um dos críticos da
crença religiosa, Freud, em O futuro de uma ilusão, destrincha
muito bem as origens psicológicas do anseio da humanidade por
acreditar em alguma força sobre-humana (mas que, não
coincidentemente, na maior parte das vezes tem uma feição humana
paternal: Zeus, Jesus, Moisés, Maomé etc...). É difícil não
respeitar, pela racionalidade, a maioria dos argumentos expostos nessa obra.
Um dos motivos do êxito das religiões,
em especial das cristãs, é incutir nas pessoas a ideia de que as
injustiças da vida terrena serão compensadas no reino dos céus.
Com isso, todo o fracasso e toda a desilusão são amenizados por
essa expectativa de um dia serem compensados pela glória da comunhão
com uma divindade.
Sem falar que a angústia imensa da
finitude humana também é compensada por esse cheque pré-datado da
vida além-túmulo, a ser pago por um sacado imaginário que dirige um banco que ninguém nunca viu.
Para os que entendem que a razão deve
fundamentar as respostas aos problemas da humanidade, resta concluir
apenas pela total falta de uma causa metafísica que dê origem ou
explique crimes abomináveis como este praticado contra as
adolescentes nigerianas (dentre tantos outros).
Se essa certeza nos priva do consolo
religioso – e nos põe na situação desconfortável de saber que a
morte é o fim de tudo, e que se aproxima a cada segundo –, ela,
por outro lado, nos torna mais solidários. E falo em uma
solidariedade racionalmente justificada, não aquela imposta goela
abaixo por dogmas religiosos.
Explico: quando nos damos conta de que
aquilo que possuímos hoje é resultado de uma combinação de mérito
pessoal com fatores completamente aleatórios e alheios a nós (local
de nascimento, família, condições econômicas, etc...), nos
obrigamos a concluir, pela coerência, que a noção de justiça
baseada unicamente no mérito pessoal não pode se sustentar, e que é
necessário adotar uma noção de justiça distributiva, que
compense as desigualdades impostas pela natureza e pelas sociedades
aos indivíduos.
Ou seja, o que consideramos justo não
pode se basear unicamente no mérito ou demérito pessoal dos
indivíduos, pois não existe mérito ou demérito que não seja
produto, inclusive, de circunstâncias que não foram escolhidas pelo
sujeito.
Parece simples em teoria, mas, na
prática, a questão da justiça distributiva permeia questões
altamente controversas na nossa sociedade – como impostos para
grandes fortunas; cotas nas universidades e no serviço público; etc.
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