Era uma manhã fria embora fosse
primavera; soprava um vento chato como esse vento invernal que sopra
agora pela janela e enrijece meu corpo. Entramos em um ônibus em frente ao hotel e desembarcamos no porto de Pireu, onde já não sentia mais tanto frio, pela luminosidade que nos abraçava. Tinha havido uma reunião um
dia antes, pra passar informações gerais sobre o cruzeiro, sobre o
transfer que nos levaria até o porto e sobre a volta
ao continente. Não pudemos participar da reunião, pois no dia
anterior, umas três quadras depois da descida da Acrópole, fomos
desviados de nosso caminho por um protesto que tomava as ruas de
Atenas. Era 2010 e os atenienses protestavam enfurecidos contra
medidas de austeridade do governo. Lembro que para não sermos
atropelados e pisoteados pelos protestantes que fugiam desabalados
da polícia, que vinha atrás explodindo bombas de fumaça e
de gás lacrimogênio, entramos em um parque imenso, que
ficava à direita da avenida que devíamos seguir para voltarmos ao
hotel. Saímos do outro lado do parque e caminhamos várias quadras
no sentido paralelo à avenida de que saímos, sempre impedidos devretomar nosso caminho em razão de a polícia haver fechado várias
ruas de acesso à área central. Após minutos de caminhada costeando
o outro lado do parque, desembocamos em uma área ampla, com uma
avenida enorme, margeada por prédios novos que pareciam abrigar
escritórios. A mudança de arquitetura indicava que estávamos cada
vez mais distante do caminho que deveríamos tomar. Seguimos por
aquela avenida, até conseguirmos entrar em uma rua que não
estava bloqueada. Então veio a sensação desconcertante de que estávamos perdidos. Sem mapa, sem celular e sem pessoas à volta
querendo prestar informações em inglês. Foi aí que, ao comprar um
cartão telefônico em uma banca de jornais, encontramos um grego de
quem me lembro como Stavros Melos – era médico pediatra, falava inglês e, por
coincidência, tinha um amigo brasileiro que trabalhava em nossa
cidade de origem. Stavros nos acompanhou por cerca de vinte quadras
até de volta ao hotel. Ia conosco seu filho, um
menino chamado Theodoro, que segundo Stavros significava dom (doro)
de deus (theo). Chegando no hotel, a reunião do cruzeiro
havia terminado. Pois agora, ali, no porto primordial de Pireu, um
dia após ser resgatado pela solidariedade humana, recebia
informações padronizadas de como colocar o colete salva-vida, dentro de um navio
enorme e pouco acolhedor... Três anos se passaram e as duas cenas
hoje se fundem na minha memória: um procedimento burocrático dentro
de um navio moderno e sem alma, contrastando com a essência humana e
simples de um porto antiquíssimo; e o desalento do extravio do rumo
em uma cidade estranha contrastando com a mão providencial do
destino, naquele dia estendida por Stavros Mellos e seu filho
Theodoro.
segunda-feira, 7 de outubro de 2013
sábado, 21 de setembro de 2013
O cortador de grama
O cortador de grama
Uma janela grande. Duas persianas horizontais de
plástico; uma abaixada completamente, a outra, levantada, deixando
cerca de dois terços de visão para o lado de fora. Estou sentado na
cama, vejo folhas de um verde fresco em um galho de árvore que se
projeta do pátio vizinho em direção à rua – lembro de ter visto
essa árvore no inverno, com suas grandes folhas de um marrom quase
dourado; não conheço sua espécie, mas gosto de pensar que é um
plátano, porque gosto da sonoridade desse nome. Hoje o verde é
fresco, talvez porque tenha chovido há pouco, talvez porque a
primavera deve começar em alguns dias – ao menos no calendário. O
tempo ainda tem dias chuvosos, cinzas e frios, como ocorreu na maior
parte desse inverno longo e difícil. Voltei de uma viagem agradável
e cai no meio desse inverno impiedoso – aliás, mais um elemento de
estranhamento, porque às vezes sinto não pertencer a esse clima
frio, chuvoso e úmido. Enfim, as folhas dessa árvore tem esse
frescor primaveril, e o sol que sucedeu a chuva de mais cedo brilha
claro lá fora, tornando completamente azul o céu que figura no
fundo desse quadro emoldurado pela janela semiaberta. Há um murmúrio
vindo da rua e dos pátios vizinhos. O som de um compressor d'água ou
de um cortador de grama convida pra sair à rua, onde a vida está
acontecendo em seus eventos prosaicos: um jovem lava o carro do pai,
um outro apara o gramado.
Lembro de quando era jovem, e também
tinha a incumbência de cortar a grama de nosso jardim. Era algo
desagradável: um trabalho verdadeiramente braçal e difícil, em
especial pelo péssimo estado do cortador de grama, que devia pesar
mais do que eu à época, tinha quatro rodas plásticas endurecidas
que o tornavam praticamente incontrolável, e era bastante
ineficiente. Era, além de tudo, de um barulho exagerado. Penso
vagamente que não tenho mais obrigações braçais dessa natureza,
mas tenho obrigações muito mais exaustivas, como se cada dia
acordasse para conduzir um cortador invisível de grama, me
movimentando de forma arrastada e pesada por entre gramados gigantes,
constantemente atordoado por um barulho que não sei de onde vem,
incomodado com a poeira no olhos, parando aos poucos e arrancando
algumas ervas daninhas com a mão, e sempre pensando em quanto falta
pra terminar a tarefa do dia e finalmente descansar. Não sentia
prazer em cortar grama àquele tempo; e agora também só penso no
frescor primaveril das folhas desse plátano, cujo verde me convida
pra caminhar sem rumo, por entre caminhos ensolarados e sob um céu
azul e cálido.
Não vou. O cortador de grama me
espera.
quarta-feira, 31 de julho de 2013
O Estrangeiro: cinismo e libertação.
Em o
estrangeiro, de Camus, o protagonista Meursault é um homem
indiferente aos sentimentos mais ordinários do homem-comum, e
isso fica claro na cena inicial, em que não se comove
minimamente com a morte da própria mãe. No avançar,
vê-se que o estrangeiro não se choca com a mesquinhez de um
seu vizinho; não se importa com a imoralidade de um outro.
Parece
alguém completamente alheio ao que é prezado e cultuado
por consenso: a família, a religião, os bons costumes.
Vive como um estrangeiro não apenas em sua própria
cidade, mas no seio de sua família, entre seus conhecidos...
Por
colocar-se à margem do que é comum, lembra a filosofia
dos cínicos (kinikós) – que tinham esse nome
porque viviam como cães, kynós –: Meursault é
um cão, que vive por instinto e não por opção,
e que se se comove é apenas com o que há na natureza (phýsis).
Difere dos cínicos porque seu distanciamento não parece
consciente. Antes parece ser resultado de longa e gradual perda de
valores morais e de uma crescente indiferença ao mundo
comunitário.
O mais
impressionante, contudo, é que esse distanciamento e esse
despojamento não o desumanizam.
Pelo
contrário, tem-se a impressão de que ele, desinvestido
de qualquer valor moral, torna-se o verdadeiro homem, aquele que vive
para si e não se comove com nada, porque sabe que nada é
importante, porque nada faz sentido.
Há
um pessimismo indiscutível, mas há também um
golpe intenso sobre o espírito do homem-comum, que o faz por
primeiro encolher-se de dor como quem acorda a socos de um sono
profundo, e por segundo cogitar que a morte pode não ser a
única libertação.
Marcadores:
Albert Camus,
Cinismo,
O estrangeiro
domingo, 24 de março de 2013
Depois de Lucia - sadismo, barbárie e silêncio
Atordoado.
Saí do cinema atordoado. Acabo de ver “Depois de Lucia”, filme do
mexicano Michel Franco. A adolescente Alejandra sofre todo tipo de violência
física e psicológica de seus coleguinhas de colégio:
sádicos oriundos de
famílias-pequeno-burguesas-encabeçadas-por-pais-negligentes-e/ou-igualmente-sádicos.
Alejandra engole a seco a perseguição; ama seu pai que
recentemente perdeu a esposa (mãe de Alejandra); quer
protegê-lo.
A
condução do filme é exímia: os diálogos
com o diretor do colégio e com o investigador da polícia
são um golpe na boca do estômago, e o soco inglês
vem como a burocrática ineficácia de um sistema que não
sabe lidar com a barbárie cotidiana praticada por esses
animais que habitam os estabelecimentos de ensino. O ronco grave do
motor da caminhoneta do pai de Alejandra, ao perseguir um dos algozes
da filha, acelera o coração do espectador de sentidos
menos embotados.
O filme
só confirma minha teoria: o ser humano é por natureza
sádico.
Comprazer-se
com o sofrimento alheio é ínsito às criancinhas
(que adoram machucar umas as outras, p. ex.), instinto inexplicável
pela teoria da evolução, que só cessa pela
intercessão firme e incondicional de pais presentes e que
tragam em si essa interdição que, por sua vez, um dia
receberam de seus pais...
Incrivelmente,
rodam os créditos do filme e ouço no escuro vozes de
espectadores jovens - de cabelos desgrenhados e aquele jeito descolado de “se hay
gobierno soy contra” - que só conseguem formular uma
afirmação rasa e impertinente: de que não lhes
parecer plausível que uma adolescente (no caso, Alejandra)
sofresse tanto sem relatar as sevícias a seu pai...
...Comentário da amplitude de suas visões bitoladas!
Vejam o
filme e me digam se há implausibilidade em uma jovem vulnerável e enlutada ser escolhida como objeto do sadismo de seus colegas.
E, de
mais a mais, que importa Alejandra silenciar sobre o que lhe acontece (embora sejam evidentes seus motivos)???
O que importa é o que
lhe é imposto, e não seu silêncio...
Enfim, há
que ser cego para não ver o que é mostrado como cerne do filme:
o sadismo, cada vez mais sem contenção, cada vez mais
divulgado (e visto) no you tube, cada vez mais superior aos
meios de sancionamento, desses jovens sem ética, sem moral e
sem humanidade, que um dia se tornam adultos de iguais predicados...
Marcadores:
depois de lucia; sadismo; bullyng
domingo, 3 de fevereiro de 2013
Sauntering
Gosto de tomar livros à
biblioteca alheia. Dia desses, manhã ociosa de domingo, mão
estendida à estante que não era minha, veio dar-me à vista o
clássico “A Desobediência Civil”, publicado pela Martin Claret
em reunião com “Outros Textos” de Thoreau. Pulei o ensaio
principal – não era texto para uma manhã de domingo – e fui ao
texto anexo “Andar a pé”, no qual Thoreau discorre sobre a arte
do sauntering.
Para
ser preciso, acompanho o autor:
“(...) sautering,
palavra esplendidamente derivada de “pessoas vadias que erravam
pelo país, na Idade Média, e pediam esmola sob o pretexto de irem à
la Sainte Terre, à
Terra Santa. Eram tão conhecidos, que até as crianças exclamavam
'lá vai um SainteTerrer', um 'Saunterer', um da Terra Santa. (…)
Alguns por certo derivariam a palavra de sans terre,
sem terra ou pátria, o que, por conseguinte, no bom sentido,
significará – não tendo pátria determinada, todo lugar pode ser
sua pátria. (…) Entendo a primeira como sendo a derivação mais
acertada, já que toda caminhada é uma espécie de cruzada...”.
(fl. 42).
Thoureau
tinha um jeito de viver tão extremo e diferente, com práticas e
aptidões tão inusitadas (… morar no mato, viver quase sem
dinheiro, alimentar-se o mínimo e com o básico etc... - vide Walden), que nos faz
pensar se o nosso modo de vida, socialmente aceito (ou imposto?),
realmente é o correto.
Sauntering, tirando a
interessante origem da palavra, nada mais é do que vagar a esmo, em
algum campo ou mato, sem qualquer pensamento urbano
na cabeça. Alguém que faça isso hoje em dia, depois de um dia de
trabalho, correria risco de ser interditado pela família.
Mas
se praticar sauntering
não é uma daquelas ideias práticas, não deixa de forçar uma
reflexão sobre estilo de vida de vida, já que cada vez mais se
oscila entre um sedentarismo crônico e atividades de lazer pouco
relaxantes (p. ex. viajar para praias lotadas, após dirigir por horas
emestradas engarrafadas...).
Pena
que a combinação de reflexão crítica com o desejo de viver melhor
não sejam suficientes para a mudança: essa mistura, para fazer o
motor da ação funcionar, ainda carece de uma faísca de iniciativa,
coisa que geralmente se tem tarde demais.
Thoreau, entre justificar racionalmente o não pagamento de tributos
(em a "A desobediência Civil"), exaltar caminhadas a esmo ("Andar a pé") e defender um estilo de vida que beira
a misantropia ("Walden"), pinta o quadro de sua existência com cores tão
fortes que nos obriga a pensar que nossa vida, se pintada fosse,
teria tintas demasiado desbotadas...
Assinar:
Postagens (Atom)