"...Mas o quociente de dor que a gente sofre já não é chocante o bastante para não precisar de uma amplificação ficcional, que dê às coisas uma intensidade que é efêmera na vida e que por vezes chega a passar despercebida? Não para algumas pessoas.
Para umas poucas, muito poucas, essa amplificação, que brota do nada, insegura, constitui a única confirmação, e a vida não vivida, especulada, traçada no papel impresso, é a vida cujo significado acaba sendo mais importante..." (Philip Roth, Fantasma Sai de Cena).

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Stavros Mellos

Era uma manhã fria embora fosse primavera; soprava um vento chato como esse vento invernal que sopra agora pela janela e enrijece meu corpo. Entramos em um ônibus em frente ao hotel e desembarcamos no porto de Pireu, onde já não sentia mais tanto frio, pela luminosidade que nos abraçava. Tinha havido uma reunião um dia antes, pra passar informações gerais sobre o cruzeiro, sobre o transfer que nos levaria até o porto e sobre a volta ao continente. Não pudemos participar da reunião, pois no dia anterior, umas três quadras depois da descida da Acrópole, fomos desviados de nosso caminho por um protesto que tomava as ruas de Atenas. Era 2010 e os atenienses protestavam enfurecidos contra medidas de austeridade do governo. Lembro que para não sermos atropelados e pisoteados pelos protestantes que fugiam desabalados da polícia, que vinha atrás explodindo bombas de fumaça e de gás lacrimogênio, entramos em um parque imenso, que ficava à direita da avenida que devíamos seguir para voltarmos ao hotel. Saímos do outro lado do parque e caminhamos várias quadras no sentido paralelo à avenida de que saímos, sempre impedidos devretomar nosso caminho em razão de a polícia haver fechado várias ruas de acesso à área central. Após minutos de caminhada costeando o outro lado do parque, desembocamos em uma área ampla, com uma avenida enorme, margeada por prédios novos que pareciam abrigar escritórios. A mudança de arquitetura indicava que estávamos cada vez mais distante do caminho que deveríamos tomar. Seguimos por aquela avenida, até conseguirmos entrar em uma rua que não estava bloqueada. Então veio a sensação desconcertante de que estávamos perdidos. Sem mapa, sem celular e sem pessoas à volta querendo prestar informações em inglês. Foi aí que, ao comprar um cartão telefônico em uma banca de jornais, encontramos um grego de quem me lembro como Stavros Melos – era médico pediatra, falava inglês e, por coincidência, tinha um amigo brasileiro que trabalhava em nossa cidade de origem. Stavros nos acompanhou por cerca de vinte quadras até de volta ao hotel. Ia conosco seu filho, um menino chamado Theodoro, que segundo Stavros significava dom (doro) de deus (theo). Chegando no hotel, a reunião do cruzeiro havia terminado. Pois agora, ali, no porto primordial de Pireu, um dia após ser resgatado pela solidariedade humana, recebia informações padronizadas de como colocar o colete salva-vida, dentro de um navio enorme e pouco acolhedor... Três anos se passaram e as duas cenas hoje se fundem na minha memória: um procedimento burocrático dentro de um navio moderno e sem alma, contrastando com a essência humana e simples de um porto antiquíssimo; e o desalento do extravio do rumo em uma cidade estranha contrastando com a mão providencial do destino, naquele dia estendida por Stavros Mellos e seu filho Theodoro.

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