"...Mas o quociente de dor que a gente sofre já não é chocante o bastante para não precisar de uma amplificação ficcional, que dê às coisas uma intensidade que é efêmera na vida e que por vezes chega a passar despercebida? Não para algumas pessoas.
Para umas poucas, muito poucas, essa amplificação, que brota do nada, insegura, constitui a única confirmação, e a vida não vivida, especulada, traçada no papel impresso, é a vida cujo significado acaba sendo mais importante..." (Philip Roth, Fantasma Sai de Cena).

quinta-feira, 1 de maio de 2014

No caminho da reação

"No caminho, com Maiakovski" é um poema do brasileiro Eduardo Alves da Costa, que contém versos muito conhecidos, embora equivocada e comumente atribuídos ao poeta russo. São esses:

Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Contundentes, os versos falam sobre as consequências da nossa omissão em face do que é indiscutivelmente errado, praticado conosco ou com outros; falam das consequências de nossa inércia pelo medo.

Ao ler esses versos, difícil não vir à mente tantas cenas do cotidiano, recente ou remoto, em que nos calamos por medo de sermos prejudicados por pessoas injustas, arbitrárias, sádicas, mesmo sabendo da flagrante injustiça que impingem a nós ou a outrem.

O contraponto, diria alguém disposto a racionar, é que às vezes calar é uma estratégia de sobrevivência: gritar palavras de ordem contra a irracionalidade é estéril; tentar punir a quem o sistema protege é inócuo, e só nos prejudica.

Eis o eterno dilema: escancarar o que está errado, e sofrer as consequências, ou silenciar e sofrer igualmente pelo sentimento de que nossa voz nos é arrancada pelo medo...

Se sofrer, então, é inevitável, vamos à luta – diria um idealista.

Mas se é inútil reagir, porque a injustiça de um mundo errado não se corrige, nos recolhamos à vida entre os nossos, onde há respeito e lógica, e não escancaremos as ilegalidades que vemos a toda hora – diria um realista.


Em qualquer caso, sempre queremos viver em um mundo onde não existe tal dilema, ou porque os “poderosos” não cometem arbitrariedades, ou porque são sempre punidos quando as cometem. Esse mundo não existe; e algo deve ser feito, pois pela inércia nada muda. Esse algo, contudo, parece se encontrar a meio caminho entre um ataque suicida e uma postergação medrosa: deve ser uma ação precisa e calculada, atingindo no cerne as ações arbitrárias. No cálculo, deve se pesar inclusive se é possível melhorar o mundo de forma mais efetiva por outros meios menos conflitantes, e também o peso que implicará aceitar nossa inação.

Mas se dessa equação resultar a necessidade de agir, aí então só resta acreditarmos que somos fortes, e que resistiremos ao contra-ataque dos ignóbeis, daqueles que dormem tranquilos porque têm certeza de que ninguém, nunca, reagirá às suas arbitrariedades, e, se nenhuma justiça sobrevier disso tudo, nos restará aos menos saber do sono de que serão privados esses injustos, graças ao barulho estrondoso de nossa ação inesperada...

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