O Saramago conta a história de um homem que possui um duplicado; uma cópia fisicamente idêntica de sua pessoa, porém com personalidade própria e distinta... O livro nem é dos meus preferidos, mas me lembrei dele agora mesmo.
Olhei para meus sapatos e percebi que estavam lustrosos como nunca. Claro: hoje recebi uma “graxa” de um desses meninos que ganham a vida lustrando sapatos alheios. Custou dois reais. O pastel folhado eu dei de graça.
Uma vez, um italiano, morando de favor no Brasil, contou-me que não aceitava a idéia de que a doméstica de seus hospedeiros lavasse seu prato. Disse que o mínimo que um homem (“digno” ficou subentendido) deve fazer é limpar o prato em que comeu...
Ainda penso nisso. E, analogamente, nunca quis que engraxassem meus sapatos. Talvez por pensar que o mínimo que um homem (digno?) deve fazer é lustrar os próprios calçados... e talvez por enxergar um tanto de submissão no ato de alguém fazê-lo por mim.
Mas principalmente me opunha à idéia por atribuir a essa cena um simbolismo de que, na vida, os dados do destino só beneficiam uns poucos; os demais têm de lidar com a má sorte inicial (e alguns pouquíssimos desses conseguem transformá-la em êxito).
Hoje, no entanto, sentimentos maiores levaram-me a aceitar os serviços de um engraxate. Explico.
Inicialmente, eu recusei a “graxa” oferecida (justamente pela minha contrariedade à idéia). No entanto, decidi pagar um pastel para o engraxate.
Enquanto ele esperava que lhe trouxessem o salgado, vi que insistia em prestar seus serviços.
De repente me ocorreu que aquele rapaz iria se sentir mais digno ao prestar seus serviços em troca do pastel, ao invés de receber a comida como uma simples esmola.
Pensando nisso (e pensando rapidamente que a dignidade dele era mais importante que minhas restrições à situação), resolvi aceitar os serviços do engraxate.
Enquanto isso, descobri que ele estudava na quinta série, tinha treze anos, e que participava de uma escolhinha de futebol. Porém, o que mais me chamou a atenção foi o fato de seu primeiro nome ser idêntico ao meu.
Daí por que pensei no “Homem Duplicado” do Saramago, mas não no sentido de possível identidade física entre mim e outra pessoa, e sim no sentido de que eu e o engraxate temos o mesmo prenome, mas vidas completamente diferentes, e que, apenas por alguma aleatoriedade inexplicável do destino, não era eu quem estava engraxando os sapatos dele...
Este post poderia ser o número dois de uma série chamada “exercício de troca de lugar”, iniciada com o post “A minha rota 66”, em cujo relato eu também me coloquei no lugar de outra pessoa (a qual, presumi, deveria levar uma vida menos fácil do que a minha).
Eu ter escrito dois textos com o mesmo sentimento subjacente não é mera coincidência.
Aliás, à exceção das coisas intangíveis, nada é por acaso... se quisermos que não seja.
quinta-feira, 14 de maio de 2009
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