"...Mas o quociente de dor que a gente sofre já não é chocante o bastante para não precisar de uma amplificação ficcional, que dê às coisas uma intensidade que é efêmera na vida e que por vezes chega a passar despercebida? Não para algumas pessoas.
Para umas poucas, muito poucas, essa amplificação, que brota do nada, insegura, constitui a única confirmação, e a vida não vivida, especulada, traçada no papel impresso, é a vida cujo significado acaba sendo mais importante..." (Philip Roth, Fantasma Sai de Cena).

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Tudo é por acaso. Nada é por acaso.

O Saramago conta a história de um homem que possui um duplicado; uma cópia fisicamente idêntica de sua pessoa, porém com personalidade própria e distinta... O livro nem é dos meus preferidos, mas me lembrei dele agora mesmo.

Olhei para meus sapatos e percebi que estavam lustrosos como nunca. Claro: hoje recebi uma “graxa” de um desses meninos que ganham a vida lustrando sapatos alheios. Custou dois reais. O pastel folhado eu dei de graça.

Uma vez, um italiano, morando de favor no Brasil, contou-me que não aceitava a idéia de que a doméstica de seus hospedeiros lavasse seu prato. Disse que o mínimo que um homem (“digno” ficou subentendido) deve fazer é limpar o prato em que comeu...

Ainda penso nisso. E, analogamente, nunca quis que engraxassem meus sapatos. Talvez por pensar que o mínimo que um homem (digno?) deve fazer é lustrar os próprios calçados... e talvez por enxergar um tanto de submissão no ato de alguém fazê-lo por mim.


Mas principalmente me opunha à idéia por atribuir a essa cena um simbolismo de que, na vida, os dados do destino só beneficiam uns poucos; os demais têm de lidar com a má sorte inicial (e alguns pouquíssimos desses conseguem transformá-la em êxito).

Hoje, no entanto, sentimentos maiores levaram-me a aceitar os serviços de um engraxate. Explico.

Inicialmente, eu recusei a “graxa” oferecida (justamente pela minha contrariedade à idéia). No entanto, decidi pagar um pastel para o engraxate.

Enquanto ele esperava que lhe trouxessem o salgado, vi que insistia em prestar seus serviços.

De repente me ocorreu que aquele rapaz iria se sentir mais digno ao prestar seus serviços em troca do pastel, ao invés de receber a comida como uma simples esmola.

Pensando nisso (e pensando rapidamente que a dignidade dele era mais importante que minhas restrições à situação), resolvi aceitar os serviços do engraxate.

Enquanto isso, descobri que ele estudava na quinta série, tinha treze anos, e que participava de uma escolhinha de futebol. Porém, o que mais me chamou a atenção foi o fato de seu primeiro nome ser idêntico ao meu.

Daí por que pensei no “Homem Duplicado” do Saramago, mas não no sentido de possível identidade física entre mim e outra pessoa, e sim no sentido de que eu e o engraxate temos o mesmo prenome, mas vidas completamente diferentes, e que, apenas por alguma aleatoriedade inexplicável do destino, não era eu quem estava engraxando os sapatos dele...

Este post poderia ser o número dois de uma série chamada “exercício de troca de lugar”, iniciada com o post “A minha rota 66”, em cujo relato eu também me coloquei no lugar de outra pessoa (a qual, presumi, deveria levar uma vida menos fácil do que a minha).

Eu ter escrito dois textos com o mesmo sentimento subjacente não é mera coincidência.

Aliás, à exceção das coisas intangíveis, nada é por acaso... se quisermos que não seja.

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