"...Mas o quociente de dor que a gente sofre já não é chocante o bastante para não precisar de uma amplificação ficcional, que dê às coisas uma intensidade que é efêmera na vida e que por vezes chega a passar despercebida? Não para algumas pessoas.
Para umas poucas, muito poucas, essa amplificação, que brota do nada, insegura, constitui a única confirmação, e a vida não vivida, especulada, traçada no papel impresso, é a vida cujo significado acaba sendo mais importante..." (Philip Roth, Fantasma Sai de Cena).

domingo, 10 de maio de 2009

A minha rota 66

A rota 66 atravessava os Estados Unidos de Leste a Oeste. Foi por essa highway que Jack Kerouac cruzou o país há mais de cinquenta anos. As experiências que aquela viagem maluca lhe proporcionou foram eternizadas no livro On The Road, sobre o qual comentei tempos atrás no blog.

Hoje tive meu dia de rota 66: cruzei boa parte do Estado, indo de oeste a leste em uma linha reta e exaustiva.

A viagem, se não me rendeu experiências lisérgicas como as vividas por Kerouac, também não foi totalmente desprovida de momentos propícios para reflexão.

Eis um deles.

Como havia partido após o almoço, os primeiros cem quilômetros de estrada foram de uma aborrecida sonolência. Nem mesmo a discografia completa do Led, tocando em bom som no carro, conseguia me animar.

Então resolvi parar para um café.

Assim que cheguei à mais decente loja de conveniência do oeste, notei do lado de fora um velho sentado em uma cadeira de plástico, olhando pro vazio à frente. Ele tinha mais ou menos oitenta e vários anos, saúde aparentemente debilitada e aquele olhar vago de quem parece divisar fantasmas no horizonte.

Então pensei: um dia também estarei velho assim, e quem sabe vou estar sentado numa cadeira de plástico, à margem de uma rodovia esquecida, olhando pro vazio e pensando na vida passada...
Guardei aquela imagem no bolso da memória e entrei na loja de conveniências. Enquanto esperava o café, escutei alguém na televisão, explicando pro Faustão (sim, o Fausto Silva) sobre Cronos, divindade grega que controlava o TEMPO e que engoliu seus filhos (todos menos Zeus) por temer que o destronassem.

Ainda escutei o entrevistado dizer: daí por que se diz que o “tempo engole seus filhos”.

Bebi o café (que surtiu o efeito esperado) e segui viagem pensado naquela cena: o velho do olhar perdido à frente da loja e, lá dentro, uma explicação sobre o tempo engolindo seus filhos.

Logo me lembrei que a menos de 24 horas havia conversado com uma amiga sobre a passagem veloz do tempo; e que havíamos lido sobre "o tempo presente, os homens presentes, a vida presente" (Drummond, Mãos dadas).

Tudo isso me fez pensar: seria mera coincidência a reunião, em um mesmo contexto, de tantas referências explícitas ao transcurso inexorável do tempo?

Talvez sim. Talvez não.

Mas, como me disseram (e eu acreditei), as coisas todas são vazias; somos nós que as preenchemos de sentido.

Assim, no meu caso, eu preenchi esses eventos com o sentido de uma ordem, uma ordem emanada de uma divindade cega e implacável: "não se preocupe desnecessariamente, não tenha pressa desnecessariamente; as coisas mais preciosas e as coisas mais vis têm todas o mesmo destino: ser engolidas pelo tempo".
























Pintura de Goya: Cronos engolindo seus filhos.

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