"...Mas o quociente de dor que a gente sofre já não é chocante o bastante para não precisar de uma amplificação ficcional, que dê às coisas uma intensidade que é efêmera na vida e que por vezes chega a passar despercebida? Não para algumas pessoas.
Para umas poucas, muito poucas, essa amplificação, que brota do nada, insegura, constitui a única confirmação, e a vida não vivida, especulada, traçada no papel impresso, é a vida cujo significado acaba sendo mais importante..." (Philip Roth, Fantasma Sai de Cena).

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Édipo mata o pai em acidente de trânsito II


Assim é que a jornada de Édipo, muito antes de receber a conotação sexual dada pelos psicanalistas, representa uma jornada de busca da verdade pessoal, um sacrifício corajoso em busca da identidade própria, tão prezada pelos gregos antigos.

Édipo, como dizia no post anterior, desposara Jocasta, a rainha viúva de Tebas, sem sabê-la sua mãe. Na condição de rei, consulta o oráculo de Delfos durante uma peste que assolava o seu reino, e este impõe a Édipo que encontre o assassino do seu antecessor no trono de Tebas, o falecido rei Laio.

Como os gregos não costumavam desprezar nem vaticínios nem incumbências dadas pelos Oráculos (vide Leonidas, que se lascou contra os Persas após consultar o mesmo oráculo), Édipo lança-se na investigação proposta e sai em busca do autor da morte de Laio. 

Ao fim e ao cabo, descobre ter sido ele próprio quem o matara o rei Laio, e que, muito pior, Laio era seu pai biológio, assim como a viúva que desposara em Tebas, sua mãe. Desolado por conhecer a verdade de sua existência, arranca seus olhos e passa a vagar pelo mundo antigo, até que, após anos de exílio e peregrinação, vem a ser perdoado pelos Deuses e consagrado como um herói, por ter tido a coragem de “conhecer-se a si mesmo”.

Não é por acaso que a frase "Conhece-te a ti mesmo", segundo a tradição grega, e antes de ser apropriada por Sócrates, estava escrita no pórtico de entrada do Oráculo de Delfos.

Enfim, essa leitura do mito, sobre a importância do autoconhecimento, foi suplantada pela leitura da psicanálise moderna, de modo que hoje Édipo é sinônimo de desejo sexual incestuoso. Todavia, da leitura original do mito contado por Sófocles, pode se extrair lição preciosa e importante, principalmente para uma sociedade formada por pessoas sem identidade própria: o caminho do autoconhecimento é doloroso, exige coragem, mas é indispensável para que o homem se liberte de uma condição de joguete do destino, assumindo controle da própria existência.




(foto indicando o Templo de Apolo - vide foto no post "A origem do Filósofo Amador" -, onde ficava o Oráculo de Delfos, o qual foi consultado, dentre outros, por Édipo e Leonidas...)

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Édipo mata o pai em acidente de trânsito


Como tenho de viajar muito, para manter-me próximo de meus afetos, tenho por rotina
percorrer no mínimo uns mil quilômetros por mês.

Como quisesse ocupar melhor essas horas vagas à direção, pensei em algo mais instrutivo que escutar Robert Plant dizendo “me aperte até o caldo começar a escorrer pela minha perna” (posso criticar, porque sou fã – Led Zeppelin II, The Lemon Song). Parêntese: alguém já disse que Jimmy Page levou um ano para compor a música de Stairway to Heaven, e Plant fez a letra numa ida ao banheiro... Assim como alguém também já chamou esse grande vocalista de "Senhor dos Anéis Erótico", por misturar esoterismo com sacanagem em suas letras.

Fechado parêntese, dizia que resolvi incrementar instrutivamente minhas viagens. Assim, baixei uma porção de arquivos de áudio do site “Universidade Falada” (http://www.universidadefalada.com.br/). Dentre eles, o “ABC da Mitologia”, do grego VIKTOR D. SALIS (ele mora no Brasil e fala muito bem português – http://www.viktordesalis.pro.br). Após ouvir esse arquivo (download gratuito), interessei-me pelos textos de Salis, e baixei outros arquivos de áudio deste autor (a preços módicos).

Explicando aos poucos, porque ninguém quer perder tempo lendo um post de vinte parágrafos (tempo líquido, diria Bauman...), posso dizer que numa das palestras, Salis revisita o mito de Édipo, do qual, confesso, só conhecia um esboço da versão apresentada pela psicanálise moderna.

Ao recontar o mito, Salis explica que Édipo (o de pés inchados, pois lhe foram furados os pés ao nascer), é um descendente da linhagem dos Labdácidas, e que seus ascendentes há muito haviam sido amaldiçoados (a árvore genealógica de Édipo remonta o casamento de Cadmo e Harmonia, pelo qual os deuses do Olimpo buscaram restaurar o convívios entre imortais e mortais – a propósito, leiam o livro de Roberto Calasso sobre isso).

Édipo mata seu pai biológico Laio (ao qual não conhecia) em uma confusão envolvendo direito de passagem de carroças sobre uma ponte. Isso mesmo, umas das primeiras mortes causadas por motoristas esquentados! Hoje em dia, briga em acidente de trânsito é cenário comum, mas quem diria que Édipo mataria seu pai por motivo tão prosaico?

Após isso, Édipo, que estava em fuga de sua cidade natal (justamente para não matar seus pais adotivos, os quais imaginava que seriam seus pais biológicos), refugia-se em Tebas, e lá desposa sua mãe, Jocasta, viúva do falecido rei Laio.

Até aí, sem novidades. Mas para permanecer no trono de Tebas, Édipo tem de se submeter ao oráculo (aquele mesmo de Delfos, mencionado no post abaixo). E o que o oráculo faz? Impõe a Édipo uma jornada pelo conhecimento de sua história de vida, uma jornada em busca da verdade, a qual, de tão luminosa e cruel, fará com que o herói arranque os olhos das órbitas e vague maldito pelo mundo, até alcançar o perdão dos deuses... (continua no próximo post).

(escrito ao som de: Bob Dylan, Shelter from the storm).

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A origem do Filósofo Amador

Dois anos de silêncio. Dois anos de distância. Neste momento, em frente à página em branco e ao cursor intermitente, o afastamento se materializa e pesa sobre mim. Só agora, tentando avaliar a dificuldade de voltar a escrever, vejo o quão longe deste blog me coloquei...

Queria escrever um post sobre a origem do Filósofo Amador. Afinal, nada mais clichê do que explicar a origem do herói no terceiro livro da saga...

Botei na cabeça que precisaria rever o filme "Nunca aos domingos" para escrever o texto, e entrei numa onda de protelações levantada pela dificuldade de achar a película.

Enfim, quando percebi que minha exigência obstava a realização de uma ação necessária, abri mão da exigência, e me dispus a acreditar que um resultado qualquer é melhor que resultado nenhum - e que quem espera demais é porque já perdeu o trem.

Portanto, vamos lá: o Filósofo Amador remete ao filme "Nunca aos Domingos", cujo enredo traz um protagonista que viaja à Grécia em busca de uma explicação para o decaimento da cultura grega clássica , que tanto influenciou a civilização ocidental moderna. Em determinada cena, ao ser questionado sobre sua ocupação, autodenomina-se timidamente um "filósofo amador" - expressão cujo significado, para mim, hoje já se desprendeu do filme.

Nesses dois anos de silêncio, dentre tantas experiências vividas, também fui à Grécia, como o filósofo amador do filme. A escolha do destino, para quem nunca havia viajado para a Europa antes, certamente não foi obra do acaso.

Homer, o protagonista de "Nunca aos Domingos", não obteve resposta a suas perguntas ao visitar o berço cultural da civilização ocidental. Assim também eu voltei de lá sem resposta às minhas. Porém,  quanto mais leio sobre o pensamento da Grécia Arcaica, mais tenho convicção de que a origem deve ser revisitada e estudada, para se conhecer o hoje e se determinar o amanhã.



(Em primeiro plano, o Teatro de Delfos; no fundo, ruínas do Templo de Apolo, onde se localizava o Oráculo mais famoso da antiguidade clássica).