"...Mas o quociente de dor que a gente sofre já não é chocante o bastante para não precisar de uma amplificação ficcional, que dê às coisas uma intensidade que é efêmera na vida e que por vezes chega a passar despercebida? Não para algumas pessoas.
Para umas poucas, muito poucas, essa amplificação, que brota do nada, insegura, constitui a única confirmação, e a vida não vivida, especulada, traçada no papel impresso, é a vida cujo significado acaba sendo mais importante..." (Philip Roth, Fantasma Sai de Cena).

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Não-julgamentos.

Fora da Ilha metafórica, a realidade impressiona. Retomando contato com o que acontece no mundo, percebo (como tantas vezes percebi, percebi e esqueci) que as coisa não vão bem...

Mas como eu cansasse de juízo de valores, cansasse de escrever sobre minha percepção estreita e antiquada do mundo, cansasse dos meus preconceitos e do fardo ideológico que carrego, resolvi escrever esse post sobre não-julgamentos

Para não julgar, trago três notícias que me atingiram nesse passeio pelo mundo externo.

Notícia 1.

Yeda Crusius mandou uma carta ao Paulo Sant'ana. Disse-lhe que era um desabafo; disse-lhe que era pessoal (que ia manuscrita, como nos velhos tempos); e explicou-lhe:

"Esta é da decisão de escrever, é num lindo domingo, uma mensagem pessoal – entenda, não deve ser pública."

O que o destinatário fez com a missiva - particular - que recebera???

Publicou-a.

Notícia 2.

Jade Goody, uma jovem inglesa cujo câncer está em fase terminal, vendeu o direito de transmissão exclusiva de seu casamento .

A doença disseminada pelo corpo de Jade e a irreversibilidade de seu quadro clínico anunciam a iminência da morte. A transmissão do casamento na mídia, ao preço de 750 mil libras, bem como o acompanhamento dos últimos dias de Jade vêm causando comiseração pública na sociedade inglesa.

O site do jornal “O Estadão” pintou as cores da cerimônia:

“A noiva estava careca por causa da quimioterapia, e carregava uma bolsa de analgésicos 'escondida' pelo design do vestido, que foi adaptado para tal; o noivo está em liberdade condicional depois de agredir um adolescente com um taco de golfe.”

Comentários há de que Jade deseja que sua morte seja transmitida na televisão, como em um reality show...

Notícia 3.

Uma senhora morava com um chimpanzé de 90 quilos nos Estados Unidos. Semana passado, o primata (o de 90 quilos) tentou matar uma amiga de sua dona. A vítima do ataque quase morreu.

Segundo a Agência Reuters,

"citando vizinhos, a mídia local disse que o chimpanzé em geral se comportava bem e participava de atividades humanas como navegar na Internet e assistir a jogos de beisebol na TV. Ele se sentava à mesa, comia carnes caras e bebia vinho, escovando os dentes após as refeições."

O chimpanzé que comia carnes caras, bebia vinho e escovava os dentes foi morto pela polícia local - não porque violasse alguma regra de etiqueta à mesa, mas por atacar um indivíduo da espécie mais evoluída...

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Não-julgamentos.

Não vou julgar se houve violação à intimidade da autora da missiva. Se o comentarista, imbuído pelo desejo de causar estardalhaço, magoou os sentimentos de quem se confessava sua amiga. O que é intimidade, o que vale a confiança? Um não-julgamento não permite tais investigações.

Não vou especular se Jade Goody é mais uma faceta de uma sociedade sádica, que, por se comprazer com o sofrimento alheio, anseia por presenciar os últimos momentos de uma mulher em sofrimento. Não há conclusão possível, pois isso exigiria um julgamento acerca dos interesses e valores contrapostos no caso.

Por fim, não vou julgar se a senhora americana que morava com um chimpanzé de 90 quilos estava certa ou errada. Deveria ela ter privilegiado o relacionamento com um ser humano? Deveria ela ter adotado uma criança senegalesa, ao invés de um chimpanzé? Haveria falta de bom senso em domesticar um animal de 90 quilos? Pode ser considerado ofensivo (a quem não tem o comer, por exemplo) o fato de um chimpanzé ser tratado à boa mesa?

Julgamentos que não serão feitos.

Cada um reflita se quiser. E se puder.

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