"...Mas o quociente de dor que a gente sofre já não é chocante o bastante para não precisar de uma amplificação ficcional, que dê às coisas uma intensidade que é efêmera na vida e que por vezes chega a passar despercebida? Não para algumas pessoas.
Para umas poucas, muito poucas, essa amplificação, que brota do nada, insegura, constitui a única confirmação, e a vida não vivida, especulada, traçada no papel impresso, é a vida cujo significado acaba sendo mais importante..." (Philip Roth, Fantasma Sai de Cena).

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Cristãos e muçulmanos: o papel do feminino - II


Em "E agora, aonde vamos?" é resgatado o papel do feminino enquanto força que amaina e domina a brutalidade do gênero masculino. A sacada das dançarinas que acampam no vilarejo evoca que Afrodite é capaz de derrotar Ares. Que a sedução emanada da beleza feminina, com seus mistérios e sutilezas, tanto é capaz de transtornar marmanjos quanto lhes apaziguar o coração, deixando entrever que o princípio de amar e ser amado se sobrepõe e elimina em grande parte o princípio do ódio, seja religioso ou de outro fundamento...

Abram-se parênteses: ao sair do cinema, também não é possível deixar de pensar o quanto as desgraças da história e os piores momentos da humanidade foram gestados e executados por integrantes do gênero masculino; e cogitar se o mundo não seria mais pacífico se habitado apenas por mulheres... Fechem-se parênteses.

Já no segundo filme, uma das protagonistas, aquela chamada Nawal Marwan (a genitora falecida), em posição oposta às protagonistas do primeiro filme, se desinveste do poder apaziguador e encantador ínsito ao gênero feminino, e assume um papel que 99% das vezes cabe aos homens: o de assassino de sangue frio.

Mas, mesmo assim, Nawal Marwan ainda é mais humana que o resto do homens à sua volta, pois engolfada pelo absurdo de uma guerra civil, e levada a cometer um crime por conta da dor que essa mesma guerra lhe impingiu, reúne forças para, próxima à morte, redimir-se perante seus filhos, impondo-lhes a tarefa de desvendarem a história de sua mãe, que vem a ser uma parte da história tristíssima do país em que nasceram. 

A verdade a que o encargo imposto no testamento conduzirá os filhos de Nawal Marwan, à semelhança do que ocorre na história de Édipo, cega e transtorna, mas depois liberta e salva, em clara mensagem de que não há dignidade para aqueles que não conhecem sua própria história.

Cristãos e muçulmanos: o papel do feminino - I


Recentemente dois filmes, igualmente excelentes, voltaram minha atenção ao papel do feminino enquanto antídoto à violência atávica do gênero masculino.

No primeiro - "E agora, aonde vamos?" -, mulheres de um vilarejo isolado do Líbano  (praticamente sem comunicação com o resto do mundo) fazem de tudo para que os homens da comunidade, divididos entre católicos e muçulmanos, não se exterminem mutuamente. 

O convívio no vilarejo entre os grupos religiosos antagônicos até então era razoável, mas brigas insignificâncias começam a indicar a deterioração daquela paz anômala. Temendo então que seus maridos e filhos se engalfinhem numa luta sem vencedores, as esposas e mães desse vilarejo, pondo de lado diferenças religiosas, fazem mil planos para acalmar os marmanjos briguentos: desde sabotar a única televisão do local, para que não se tenham notícias dos conflitos religiosos de alhures, até a inusitada contratação de dançarinas do leste europeu, que acampam no vilarejo em mini-shorts, tops e olhares lânguidos, fazendo com que os litigantes se esqueçam quem foram Jesus e Alá...

O segundo filme - “Incêndios” - é uma sucessão de socos no estômago do espectador (essa é a metáfora mais próxima que me vem à mente): dois irmãos recebem de um notário a obrigação de cumprir o testamento da mãe recentemente falecida. Nessa incumbência, vão acabar no Líbano e descobrir o passado oculto e insólito da genitora, que teve participação decisiva em evento político marcante na história daquele país...

Sobre “Incêndios” não dá para dizer muito mais, sob pena de estragar a diversão, pois o incrível do filme também é o progressivo desvendar de mistérios, culminando com um gancho no queixo que nocauteia até o espectador mais resistente.

Entre um filme e outro, mais de mês se passou. Mas terminei de ver o último e logo pensei no primeiro.


quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Perguntas musicais que não querem calar - parte II

Seguindo a série iniciada com a postagem anterior, e como lá antecipado, Moby traz a segunda pergunta musical que não quer calar. A letra praticamente se resume à indagação que lhe dá título:
"por que meu coração se sente tão mal?"


"Why does my heart feel so bad?
Why does my soul feel so bad?

These open doors
These open doors"

Ao contrário do que Travis faz com música mencionada no post anterior, em que é sugerida uma resposta à pergunta feita, Moby faz questão de perguntar e não responder. E aí reside o legal nessa canção: o convite a que seja preenchida essa lacuna pelo próprio ouvinte.

(aliás, há tantos motivos para um coração se sentir mal, que soaria ou óbvia ou pretensiosa qualquer resposta que fosse dada pelo artista).  

E no escutar e responder silenciosamente à pergunta, cada um acaba abrindo um pouco as portas fechadas dentro de si, e espiando para dentro de quartos escuros...

A existência de expressões artísticas que incitam à reflexão é um bálsamo numa sociedade acostumada
a receber informações regurgitadas e apreciar filmes, músicas e livros de conteúdo óbvio e auto-explicativo.

Mas se vontade não é de investigar respostas, é possível simplesmente ver o clipe da música (http://www.youtube.com/watch?v=1AHs7uAV1mA), e talvez se identificar com o simpático e solitário protagonista da animação...

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Perguntas musicais que não querem calar - parte I

A arte, às vezes, diz mais que a filosofia; e a música, como expressão de arte, tem um poder ilimitado de tocar no essencial da condição humana.

Da série, perguntas musicais que não querem calar (ora inaugurada), Travis e Moby acertam em cheio aqueles momentos de céu cinza em nossa vida. A banda escocesa, em música que leva o nome da pergunta, indaga: "Por que sempre chove em mim?"

"Why does it always rain on me?
Is it because I lied when I was seventeen?
Why does it always rain on me?
Even when the sun is shining
I can't avoid the lightning"

Além da pergunta oportuna, a resposta é dada em forma de hipótese indicativa de culpa: "será que é por que eu menti quando tinha dezessete anos?" 

Acreditar que erros do passado nos perseguem não raramente indica um sentimento de culpa mal resolvida, uma sensação de débito para com o mundo... Ideias como essa, se não analisadas, eventualmente desembocam em condutas de auto-sabotagem - aqueles eventos em que "misteriosamente" nos colocamos em situação de risco desnecessário, ou nos causamos prejuízo gratuito.

A música continua, e indica que há um "homem invisível" segurando o protagonista, impedindo seu crescimento e felicidade:

"I can't stand myself
I'm being held up by an invisible man
Still life on a shelf when
I got my mind on something else"

"Homem invisível", sem muita elucubração  simboliza o inconsciente - parte invisível de nós mesmos, atuando continuamente em nossas ações.

Logo, nutir inconscientemente um sentimento de culpa é como estar preso por si mesmo, impedindo-se de acessar a felicidade, e expondo-se continuamente à chuva, mesmo quando os dias são ensolarados...

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Pílulas de beleza

"Quem abre um livro e lê um trecho escolhido aleatoriamente combina arte e acaso". Com essa frase, inauguro uma nova seção do blog (já disponível no menu à esquerda), dedicada à transcrição de pequenos textos , aleatoriamente colhidos de livros que me vêm às mãos por desejo ou ócio.  


São objetos para o prazer da contemplação estética das palavras; são produtos para consumo de outro tipo de beleza.

Só não transcrevo poesia, porque aí seria covardia com a prosa. 

A proposta, aliás, é deixar o acaso apontar para coisas belas que de ordinário passam despercebidas, fechando o zoom da vista em algum parágrafo qualquer, como quem fotografa uma nuvem entre prédios altos, ou um pássaro solitário em fio de energia elétrica, parecendo uma nota em clave de sol...

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Édipo mata o pai em acidente de trânsito II


Assim é que a jornada de Édipo, muito antes de receber a conotação sexual dada pelos psicanalistas, representa uma jornada de busca da verdade pessoal, um sacrifício corajoso em busca da identidade própria, tão prezada pelos gregos antigos.

Édipo, como dizia no post anterior, desposara Jocasta, a rainha viúva de Tebas, sem sabê-la sua mãe. Na condição de rei, consulta o oráculo de Delfos durante uma peste que assolava o seu reino, e este impõe a Édipo que encontre o assassino do seu antecessor no trono de Tebas, o falecido rei Laio.

Como os gregos não costumavam desprezar nem vaticínios nem incumbências dadas pelos Oráculos (vide Leonidas, que se lascou contra os Persas após consultar o mesmo oráculo), Édipo lança-se na investigação proposta e sai em busca do autor da morte de Laio. 

Ao fim e ao cabo, descobre ter sido ele próprio quem o matara o rei Laio, e que, muito pior, Laio era seu pai biológio, assim como a viúva que desposara em Tebas, sua mãe. Desolado por conhecer a verdade de sua existência, arranca seus olhos e passa a vagar pelo mundo antigo, até que, após anos de exílio e peregrinação, vem a ser perdoado pelos Deuses e consagrado como um herói, por ter tido a coragem de “conhecer-se a si mesmo”.

Não é por acaso que a frase "Conhece-te a ti mesmo", segundo a tradição grega, e antes de ser apropriada por Sócrates, estava escrita no pórtico de entrada do Oráculo de Delfos.

Enfim, essa leitura do mito, sobre a importância do autoconhecimento, foi suplantada pela leitura da psicanálise moderna, de modo que hoje Édipo é sinônimo de desejo sexual incestuoso. Todavia, da leitura original do mito contado por Sófocles, pode se extrair lição preciosa e importante, principalmente para uma sociedade formada por pessoas sem identidade própria: o caminho do autoconhecimento é doloroso, exige coragem, mas é indispensável para que o homem se liberte de uma condição de joguete do destino, assumindo controle da própria existência.




(foto indicando o Templo de Apolo - vide foto no post "A origem do Filósofo Amador" -, onde ficava o Oráculo de Delfos, o qual foi consultado, dentre outros, por Édipo e Leonidas...)

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Édipo mata o pai em acidente de trânsito


Como tenho de viajar muito, para manter-me próximo de meus afetos, tenho por rotina
percorrer no mínimo uns mil quilômetros por mês.

Como quisesse ocupar melhor essas horas vagas à direção, pensei em algo mais instrutivo que escutar Robert Plant dizendo “me aperte até o caldo começar a escorrer pela minha perna” (posso criticar, porque sou fã – Led Zeppelin II, The Lemon Song). Parêntese: alguém já disse que Jimmy Page levou um ano para compor a música de Stairway to Heaven, e Plant fez a letra numa ida ao banheiro... Assim como alguém também já chamou esse grande vocalista de "Senhor dos Anéis Erótico", por misturar esoterismo com sacanagem em suas letras.

Fechado parêntese, dizia que resolvi incrementar instrutivamente minhas viagens. Assim, baixei uma porção de arquivos de áudio do site “Universidade Falada” (http://www.universidadefalada.com.br/). Dentre eles, o “ABC da Mitologia”, do grego VIKTOR D. SALIS (ele mora no Brasil e fala muito bem português – http://www.viktordesalis.pro.br). Após ouvir esse arquivo (download gratuito), interessei-me pelos textos de Salis, e baixei outros arquivos de áudio deste autor (a preços módicos).

Explicando aos poucos, porque ninguém quer perder tempo lendo um post de vinte parágrafos (tempo líquido, diria Bauman...), posso dizer que numa das palestras, Salis revisita o mito de Édipo, do qual, confesso, só conhecia um esboço da versão apresentada pela psicanálise moderna.

Ao recontar o mito, Salis explica que Édipo (o de pés inchados, pois lhe foram furados os pés ao nascer), é um descendente da linhagem dos Labdácidas, e que seus ascendentes há muito haviam sido amaldiçoados (a árvore genealógica de Édipo remonta o casamento de Cadmo e Harmonia, pelo qual os deuses do Olimpo buscaram restaurar o convívios entre imortais e mortais – a propósito, leiam o livro de Roberto Calasso sobre isso).

Édipo mata seu pai biológico Laio (ao qual não conhecia) em uma confusão envolvendo direito de passagem de carroças sobre uma ponte. Isso mesmo, umas das primeiras mortes causadas por motoristas esquentados! Hoje em dia, briga em acidente de trânsito é cenário comum, mas quem diria que Édipo mataria seu pai por motivo tão prosaico?

Após isso, Édipo, que estava em fuga de sua cidade natal (justamente para não matar seus pais adotivos, os quais imaginava que seriam seus pais biológicos), refugia-se em Tebas, e lá desposa sua mãe, Jocasta, viúva do falecido rei Laio.

Até aí, sem novidades. Mas para permanecer no trono de Tebas, Édipo tem de se submeter ao oráculo (aquele mesmo de Delfos, mencionado no post abaixo). E o que o oráculo faz? Impõe a Édipo uma jornada pelo conhecimento de sua história de vida, uma jornada em busca da verdade, a qual, de tão luminosa e cruel, fará com que o herói arranque os olhos das órbitas e vague maldito pelo mundo, até alcançar o perdão dos deuses... (continua no próximo post).

(escrito ao som de: Bob Dylan, Shelter from the storm).

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A origem do Filósofo Amador

Dois anos de silêncio. Dois anos de distância. Neste momento, em frente à página em branco e ao cursor intermitente, o afastamento se materializa e pesa sobre mim. Só agora, tentando avaliar a dificuldade de voltar a escrever, vejo o quão longe deste blog me coloquei...

Queria escrever um post sobre a origem do Filósofo Amador. Afinal, nada mais clichê do que explicar a origem do herói no terceiro livro da saga...

Botei na cabeça que precisaria rever o filme "Nunca aos domingos" para escrever o texto, e entrei numa onda de protelações levantada pela dificuldade de achar a película.

Enfim, quando percebi que minha exigência obstava a realização de uma ação necessária, abri mão da exigência, e me dispus a acreditar que um resultado qualquer é melhor que resultado nenhum - e que quem espera demais é porque já perdeu o trem.

Portanto, vamos lá: o Filósofo Amador remete ao filme "Nunca aos Domingos", cujo enredo traz um protagonista que viaja à Grécia em busca de uma explicação para o decaimento da cultura grega clássica , que tanto influenciou a civilização ocidental moderna. Em determinada cena, ao ser questionado sobre sua ocupação, autodenomina-se timidamente um "filósofo amador" - expressão cujo significado, para mim, hoje já se desprendeu do filme.

Nesses dois anos de silêncio, dentre tantas experiências vividas, também fui à Grécia, como o filósofo amador do filme. A escolha do destino, para quem nunca havia viajado para a Europa antes, certamente não foi obra do acaso.

Homer, o protagonista de "Nunca aos Domingos", não obteve resposta a suas perguntas ao visitar o berço cultural da civilização ocidental. Assim também eu voltei de lá sem resposta às minhas. Porém,  quanto mais leio sobre o pensamento da Grécia Arcaica, mais tenho convicção de que a origem deve ser revisitada e estudada, para se conhecer o hoje e se determinar o amanhã.



(Em primeiro plano, o Teatro de Delfos; no fundo, ruínas do Templo de Apolo, onde se localizava o Oráculo mais famoso da antiguidade clássica).




domingo, 15 de abril de 2012

Silêncio, exílio e astúcia

"(...) Não servirei àquilo em que não acredito mais quer isso se chame minha família, minha terra natal ou minha Igreja; e procurarei me expressar por meio de uma certa forma de vida ou de arte tão livremente quanto possa e tão totalmente quanto possa, usando em minha defesa as únicas armas que me permito usar: o silêncio, o exílio e a astúcia" (James Joyce. O retrato do artista quando jovem. Objetiva, 2006, p. 259/260).