Sinclair era ainda criança, quando deu por conta da existência de dois mundos: o luminoso, protegido e sacro – encerrado no ambiente familiar; e o pecaminoso, fascinante e proibido – além dos muros da casa paterna. Na infância em que fizera essa descoberta, conheceu Demian, que embora fosse apenas poucos anos mais velho, passou a ser-lhe guia e referencial de evolução.
A partir dos contatos com Demian, Sinclair iniciou seu processo de abandono do mundo luminoso e protegido da infância na casa paterna. Esse abandono – que fora permitido, dentre outras coisas, pela constatação de que o puro e o impuro são componentes igualmente essenciais da natureza humana – permitiu a Sinclair conhecer a si mesmo.
Sinclair terminou o colégio e separou-se de Demian. Passou então a trilhar sua jornada com solidão e sofrimento.
Mas só assim, recluso e solitário, Sinclair pode desgarrar-se paulatinamento do “mundo luminoso”, e afastar-se dos integrantes desse mundo ideal (que, em um sentido amplo, transcendia o núcleo protegido da família, e compreendia todo rebanho de pessoas tangidas pelos valores arbitrariamente escolhidos pela religião e pela sociedade burguesa).
Ao fim desse processo de desgarramento, o jovem sai da adolescência com uma maturidade e um autoconhecimento que iriam lhe distinguir para o resto da vida (“o sinal de Caim”).
Disso trata “Demian”: de um abandono do confortável como meio necessário ao crescimento pessoal; de uma superação do ideal de “paraíso perdido” da infância como doloroso requisito ao autoconhecimento; de uma necessidade de libertação dos mestres e dos pais para atingir a evolução pessoal (estes simbolizando não só a autoridade, mas também os valores estabelecidos e a orientação à integração incondicional à vida coletiva, a orientação à despersonalização).
Daí por que a metáfora que transpassa o livro está encerrada na frase enviada por Demian a Sinclair
“A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo”.
A ave apenas logra viver se consegue romper a casca do mundo confortável em que foi gestada. Apenas pela destruição desse mundo luminoso e confortável pode a ave cumprir com seu destino: crescer e voar.
O ano termina, e ler Demian me fez pensar em quanto buscamos o conforto e a tranquilidade em uma vida ideal, na qual possamos gozar de um conforto semelhante àquele vivido no paraíso perdido da infância, ou talvez vivido antes disso, na proteção incondicional do útero materno. Nossa casca de ovo.
Mas penso também que para atendermos ao chamado de nossa natureza particular e única, e cumprir o nosso destino – que é conhecermos a nós mesmos –, é realmente necessário deixar para trás o ideal de retorno ao acolhimento materno, e destruir os laços remanescentes com esse mundo protegido.
Para cumprimos com nossa natureza, é preciso abandonar por completo o que nos impede de sermos indivíduos únicos (e assim nos impede o mundo protegido), e aceitar a solidão o sofrimento que possam ser necessários para se autoconhecer.
Embora essencialmente não acredite em resoluções de final de ano – porque datas não mudam indivíduos –, para 2010 desejo a quem quer que leia esse post, e sobretudo a mim mesmo, a força para abandonar a nossa casca de ovo, e viver como se é no mundo que surgir depois.
domingo, 27 de dezembro de 2009
sábado, 26 de dezembro de 2009
Desejos de ano novo – A ave sai do ovo – Parte I
Estava dormindo. Adormeci lendo “Demian”, do Hermann Hesse. É meu livro de final de ano. Recordo do último livro de final de ano que definitivamente influenciou o ano que veio a seguir: foi “O homem comum”, do Philip Roth, lido em dezembro de 2007.
Desperto e observo não lembrar de qualquer sonho tido durante o breve sono vespertino. Estranho esse fato. Pois, há tempos sei da importância dos sonhos. Minhas mensagens dissimuladas do inconsciente.
E me tem sido caro e fundamental – embora já tenha sido mais outrora– tomar consciência das coisas trancafiadas no poço escuro do inconsciente. Principalmente dos desejos inconscientes, aqueles mais essenciais e que definem o caminho a seguir. O caminho para se conhecer e ser verdadeiramente quem se é.
Muito bem, “Demian” vai ser lido em quatro dias. O impulso começou na quinta-feira e vai dar cabo ao livro amanhã, domingo.
Mas depois de dar cabo ao livro, o impulso vai continuar vivendo em mim, só que diferente.
Vai ser o impulso transformado pelas palavras de Hesse. Um impulso original e próprio de meu ser inconsciente, mas que estará para sempre acrescido e potencializado pela força das palavras de “Demian” – meu livro de final de ano mais significativo até agora.
Como dito, ainda não terminei a leitura, mas ela já me trouxe até aqui, para a escrita desse post.
Amanhã, quando terminar o livro, completo esse texto. E direi sobre desejos de ano novo, e sobre o pássaro que sai do ovo, e sobre um mundo que é preciso destruir...
Desperto e observo não lembrar de qualquer sonho tido durante o breve sono vespertino. Estranho esse fato. Pois, há tempos sei da importância dos sonhos. Minhas mensagens dissimuladas do inconsciente.
E me tem sido caro e fundamental – embora já tenha sido mais outrora– tomar consciência das coisas trancafiadas no poço escuro do inconsciente. Principalmente dos desejos inconscientes, aqueles mais essenciais e que definem o caminho a seguir. O caminho para se conhecer e ser verdadeiramente quem se é.
Muito bem, “Demian” vai ser lido em quatro dias. O impulso começou na quinta-feira e vai dar cabo ao livro amanhã, domingo.
Mas depois de dar cabo ao livro, o impulso vai continuar vivendo em mim, só que diferente.
Vai ser o impulso transformado pelas palavras de Hesse. Um impulso original e próprio de meu ser inconsciente, mas que estará para sempre acrescido e potencializado pela força das palavras de “Demian” – meu livro de final de ano mais significativo até agora.
Como dito, ainda não terminei a leitura, mas ela já me trouxe até aqui, para a escrita desse post.
Amanhã, quando terminar o livro, completo esse texto. E direi sobre desejos de ano novo, e sobre o pássaro que sai do ovo, e sobre um mundo que é preciso destruir...
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
Uma balança e algumas idiossincrasias
Estava em um café, dentro de um supermercado. À frente havia uma dessas balanças eletrônicas. Enquanto esperava o pão-de-queijo sair do forno, observei por dez minutos as pessoas subindo e descendo naquela balança. Notei o quão diferentemente cada indivíduo reagiu diante daquele objeto inanimado...Idiossincrasias do cotidiano.
A primeira vítima de minha observação foi uma mulher que calçava sandálias de um solado mínimo, que se prendiam aos pés por tiras finíssimas. Ao subir na balança, executou um ato maquinal: descalçou as sandálias...
Fiquei meditando: afinal, quantos gramas seriam diminuídos, na pesagem daquele corpo (cuja massa parecia adequada à estrutura), com a simples subtração do peso irrisório de sandálias escassas? A que ponto essa diferença era importante para dona das sandálias?
Em seguida, houve duas mulheres, na faixa dos cinquenta anos. Supus que fossem irmãs. A primeira delas foi direto à balança. Desapontou-se certamente com a pesagem. Deixou isso transparecer em suas feições e, em um ato bastante previsível, disse à irmã: “vai você também! aproveita que hoje você está com uma roupa bem levinha...” A segunda irmã, contrariada, subiu na balança e desapontou-se igualmente. Com isso, porém, satisfez intimamente a irmã que se frustrara por primeiro ...
Houve também um rapaz de bermudas e regata, com uma mochila pendurada. Olhou para o visor da balança e piscou lentamente os olhos, em desaprovação. Mas a razão do desapontamento do jovem pareceu-me diversa da razão da dupla de irmãs. Estas desejavam números menores no visor; aquele, provável frequentador de um academia de musculação das proximidades, desejava números maiores...
Figura singular compôs uma senhora de idade já avançada, que, desconfiada da precisão da balança a seus pés, pressionou e apalpou cada centímetro do aparelho, procurando por botões imaginários que subtraíssem alguns gramas da pesagem...
Lembro-me também de duas adolescentes que subiram na balança da forma mais discreta e rápida possível. Não esboçaram a mínima alteração na fisionomia ao verificarem no aparelho o resultado de seus estilos de vida. Desceram e seguiram seus caminhos no mesmo passo rápido com que cruzavam pela entrada do supermercado.
Por fim,observei um senhor de cabelos tingidos, por volta dos sessenta anos, que subiu na balança mas nem soube do resultado.
Ele apenas se posicionou sobre ela para poder observar, sem parecer indiscreto demais, uma senhora que teve problemas com o aparelho antifurto posicionado à saída do supermercado.
Camuflado, do topo daquele barômetro do ego, o senhor dos cabelos tingidos contemplava as reações da pobre mulher que se debatia contra o apito dos aparelhos acusadores... Na contemplação do espetáculo absurdo, do qual era ele espectador, o senhor dos cabelos tingidos nunca imaginaria que seria, também e ao mesmo tempo, protagonista de outra ação, sendo que desta era eu o espectador...
A primeira vítima de minha observação foi uma mulher que calçava sandálias de um solado mínimo, que se prendiam aos pés por tiras finíssimas. Ao subir na balança, executou um ato maquinal: descalçou as sandálias...
Fiquei meditando: afinal, quantos gramas seriam diminuídos, na pesagem daquele corpo (cuja massa parecia adequada à estrutura), com a simples subtração do peso irrisório de sandálias escassas? A que ponto essa diferença era importante para dona das sandálias?
Em seguida, houve duas mulheres, na faixa dos cinquenta anos. Supus que fossem irmãs. A primeira delas foi direto à balança. Desapontou-se certamente com a pesagem. Deixou isso transparecer em suas feições e, em um ato bastante previsível, disse à irmã: “vai você também! aproveita que hoje você está com uma roupa bem levinha...” A segunda irmã, contrariada, subiu na balança e desapontou-se igualmente. Com isso, porém, satisfez intimamente a irmã que se frustrara por primeiro ...
Houve também um rapaz de bermudas e regata, com uma mochila pendurada. Olhou para o visor da balança e piscou lentamente os olhos, em desaprovação. Mas a razão do desapontamento do jovem pareceu-me diversa da razão da dupla de irmãs. Estas desejavam números menores no visor; aquele, provável frequentador de um academia de musculação das proximidades, desejava números maiores...
Figura singular compôs uma senhora de idade já avançada, que, desconfiada da precisão da balança a seus pés, pressionou e apalpou cada centímetro do aparelho, procurando por botões imaginários que subtraíssem alguns gramas da pesagem...
Lembro-me também de duas adolescentes que subiram na balança da forma mais discreta e rápida possível. Não esboçaram a mínima alteração na fisionomia ao verificarem no aparelho o resultado de seus estilos de vida. Desceram e seguiram seus caminhos no mesmo passo rápido com que cruzavam pela entrada do supermercado.
Por fim,observei um senhor de cabelos tingidos, por volta dos sessenta anos, que subiu na balança mas nem soube do resultado.
Ele apenas se posicionou sobre ela para poder observar, sem parecer indiscreto demais, uma senhora que teve problemas com o aparelho antifurto posicionado à saída do supermercado.
Camuflado, do topo daquele barômetro do ego, o senhor dos cabelos tingidos contemplava as reações da pobre mulher que se debatia contra o apito dos aparelhos acusadores... Na contemplação do espetáculo absurdo, do qual era ele espectador, o senhor dos cabelos tingidos nunca imaginaria que seria, também e ao mesmo tempo, protagonista de outra ação, sendo que desta era eu o espectador...
segunda-feira, 12 de outubro de 2009
das possíveis existências
“Pois sob o caos aparente, entre o tempo e o espaço, na ilusão das coisas que se engendram e se criam, um entre os outros, um como os outros, distinto dos outros, semelhante aos outros, um igual e um a mais, do infinito das possíveis existências surjo eu; e eis que o tempo e o espaço se precisam; é o hoje; é o aqui; a hora que bate; e em volta de mim, a vida...”
Édouard Dujardin (Os loureiros estão cortados)
Édouard Dujardin (Os loureiros estão cortados)
domingo, 20 de setembro de 2009
Coisas simples (abraçando o insólito)...
Coisas simples podem nos deixar muito felizes. E quando nossas opções são drasticamente reduzidas pelas contingências, as coisas mais elementares se tornam preciosas.
Hoje, 20 de setembro, domingo, saí de casa à procura de uma churrascaria. Sabia que as condições não eram favoráveis a meu objetivo. Apesar da data comemorativa, apesar de ser domingo, e apesar de uma churrascaria ser algo elementar neste Estado... tudo falta no meu povoado, e cri não seria diferente dessa vez.
Porém, quão mais difícil for a procura, tão mais recompensador será o encontro.
De fato, me vi à frente de um estabelecimento insólito. Passei de carro bem devagar, para ver se conseguia vislumbrar as condições do interior, mas não consegui enxergar nem uma fresta, pois.... havia dois cavalos estacionados bem à entrada do local!
Não posso deixar de registrar que pensei: Deus, que é isso?
Mas, como dito, nada como a falta de opções para nos fazer abraçar o insólito. Entrei e não me arrependi. Comida boa, pessoas simpáticas. Algo promisssor.
Daí para esse post transcorreram apenas uma hora e duas taças de vinho (de garrafão, of course)... e talvez essa mensagem não seja compreendida além dos limites desse feudo, mas é muito bom encontrar um lugar decente para comer em um dia como hoje...
Coisas simples... simplesmente tornadas especiais pela lógica maluca da vida...
"... And wished for comfort when in need
Now I'm here in a state of grace
This earthly heaven is enough for me..."
Hoje, 20 de setembro, domingo, saí de casa à procura de uma churrascaria. Sabia que as condições não eram favoráveis a meu objetivo. Apesar da data comemorativa, apesar de ser domingo, e apesar de uma churrascaria ser algo elementar neste Estado... tudo falta no meu povoado, e cri não seria diferente dessa vez.
Porém, quão mais difícil for a procura, tão mais recompensador será o encontro.
De fato, me vi à frente de um estabelecimento insólito. Passei de carro bem devagar, para ver se conseguia vislumbrar as condições do interior, mas não consegui enxergar nem uma fresta, pois.... havia dois cavalos estacionados bem à entrada do local!
Não posso deixar de registrar que pensei: Deus, que é isso?
Mas, como dito, nada como a falta de opções para nos fazer abraçar o insólito. Entrei e não me arrependi. Comida boa, pessoas simpáticas. Algo promisssor.
Daí para esse post transcorreram apenas uma hora e duas taças de vinho (de garrafão, of course)... e talvez essa mensagem não seja compreendida além dos limites desse feudo, mas é muito bom encontrar um lugar decente para comer em um dia como hoje...
Coisas simples... simplesmente tornadas especiais pela lógica maluca da vida...
"... And wished for comfort when in need
Now I'm here in a state of grace
This earthly heaven is enough for me..."
terça-feira, 8 de setembro de 2009
A gente nunca sabe
Vi um documentário. Sobre o Waldick Soriano. Não foi por falta de opções à disposição. Depois da partida da ilha metafórica, já disponho de mais de 3 canais.
Interessante deixar-se surpreender por algo tão inusitado quanto... Waldick Soriano.
Em determinado momento, ele disse:
"A gente nunca sabe onde vai chegar....
... e como vai chegar..."
De fato, já pensei algumas vezes: "gostaria de saber onde isso vai dar..."
Quis conhecer, de antemão, o resultado de alguma investida.
Mas nunca me perguntei: "como eu vou estar, ao final disso tudo?"
Daí, Waldick me fez concluir que, via de regra, tentamos visualizar o desfecho de nossas ações, mas não temos como praxe pensar no custo pessoal dessas mesmas ações, nem cogitamos as intercorrências que - embora não impeçam a obtenção do resultado almejado - nos modificam tanto que o próprio resultado já deixa de ter o sentido e o valor originalmente concebidos.
Resumindo, talvez seja mais importante chegar bem do que apenas chegar.
E, se não é possível prever e controlar tudo quanto possar interferir no atingimento de um objetivo, talvez seja possível, pelo menos, controlar as nossas condições pessoais no decorrer da empreitada, possibilitando que, no final de determinado projeto, não estejamos tão alienados, esgotados ou modificados, a ponto de já não ver sentido na conquista alcançada.
Interessante deixar-se surpreender por algo tão inusitado quanto... Waldick Soriano.
Em determinado momento, ele disse:
"A gente nunca sabe onde vai chegar....
... e como vai chegar..."
De fato, já pensei algumas vezes: "gostaria de saber onde isso vai dar..."
Quis conhecer, de antemão, o resultado de alguma investida.
Mas nunca me perguntei: "como eu vou estar, ao final disso tudo?"
Daí, Waldick me fez concluir que, via de regra, tentamos visualizar o desfecho de nossas ações, mas não temos como praxe pensar no custo pessoal dessas mesmas ações, nem cogitamos as intercorrências que - embora não impeçam a obtenção do resultado almejado - nos modificam tanto que o próprio resultado já deixa de ter o sentido e o valor originalmente concebidos.
Resumindo, talvez seja mais importante chegar bem do que apenas chegar.
E, se não é possível prever e controlar tudo quanto possar interferir no atingimento de um objetivo, talvez seja possível, pelo menos, controlar as nossas condições pessoais no decorrer da empreitada, possibilitando que, no final de determinado projeto, não estejamos tão alienados, esgotados ou modificados, a ponto de já não ver sentido na conquista alcançada.
sexta-feira, 21 de agosto de 2009
O peso ou a leveza?
Se você tiver bons livros em seu livreiro, sempre poderá abrir algum aleatoriamente e encontrará, em uma página escolhida a esmo, algumas palavras que se encaixarão com o momento vivido. É uma teoria. Pra mim, funciona.
“O mais pesado fardo nos esmaga, nos faz dobrar sob ele, nos esmaga contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o peso do corpo masculino. O fardo mais pesado é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da mais intensa realização vital. Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais ela é real e verdadeira.
Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes.
Então, o que escolher? O peso ou a leveza?” (Milan Kundera. A insustentável leveza do ser).
...
“O mais pesado fardo nos esmaga, nos faz dobrar sob ele, nos esmaga contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o peso do corpo masculino. O fardo mais pesado é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da mais intensa realização vital. Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais ela é real e verdadeira.
Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes.
Então, o que escolher? O peso ou a leveza?” (Milan Kundera. A insustentável leveza do ser).
...
terça-feira, 11 de agosto de 2009
as palavras estão flutuando
O título desse post era para ser "Coming back to life", por causa da música do D. Gilmour e porque este blog está literalmente voltando à vida. Do limbo siliencioso para onde havia sido enviado (pelos compromissos sempre exaustivos, inadiáveis e de sentido questionável) está voltando à vida. Mas resolvi mudar o título para "as palavras estão flutuando", porque comecei a escutar Across the Universe (Beatles) e desejei que, daqui pra frente, as palavras pudessem flutuar da minha mente para o mundo. Como se minha mente fosse um rio e o mundo o oceano onde ele deságua.
Mas sei que não vai ser assim. Não conseguimos manter a liberdade idealizada por muito tempo, pois, ao fim e ao cabo, desejamos estar presos. A prisão do trabalho, do estudo, das convenções sociais, é o que nos serve de referência, já que as pessoas constroem suas vidas a partir disso, ou rumando para isso...
Acabo de me lembrar de Drummond: "Preso a minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta. Melancolias, mercadorias espreitam-me. Devo seguir até o enjoo? Posso sem armas revoltar-me?"
Estamos presos a nossa classe e a nossas roupas, como estamos presos ao nosso compromisso de sermos normais, de sermos aceitos. Mesmo não sendo exatamente quem somos de verdade. E sem a arma da descoberta de si não conseguimos nos revoltar.
"Todos os homens voltam para casa. Estão menos livres mas levam jornais e soletram o mundo, sabendo o que perdem".
Sabemos o que perdemos. As perdas reais e as imaginárias. Mas nem sempre sabemos o que ganhamos.
Desculpem o prejuízo ao nexo...
Como disse, as palavras estão flutuando... voltando à vida... flutuando....
Lost in thought and lost in time
While the seeds of life and the seeds of change were planted
Outside the rain fell dark and slow
While I pondered on this dangerous but irresistible pastime
I took a heavenly ride through our silence
I knew the moment had arrived
For killing the past and coming back to life
Mas sei que não vai ser assim. Não conseguimos manter a liberdade idealizada por muito tempo, pois, ao fim e ao cabo, desejamos estar presos. A prisão do trabalho, do estudo, das convenções sociais, é o que nos serve de referência, já que as pessoas constroem suas vidas a partir disso, ou rumando para isso...
Acabo de me lembrar de Drummond: "Preso a minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta. Melancolias, mercadorias espreitam-me. Devo seguir até o enjoo? Posso sem armas revoltar-me?"
Estamos presos a nossa classe e a nossas roupas, como estamos presos ao nosso compromisso de sermos normais, de sermos aceitos. Mesmo não sendo exatamente quem somos de verdade. E sem a arma da descoberta de si não conseguimos nos revoltar.
"Todos os homens voltam para casa. Estão menos livres mas levam jornais e soletram o mundo, sabendo o que perdem".
Sabemos o que perdemos. As perdas reais e as imaginárias. Mas nem sempre sabemos o que ganhamos.
Desculpem o prejuízo ao nexo...
Como disse, as palavras estão flutuando... voltando à vida... flutuando....
Lost in thought and lost in time
While the seeds of life and the seeds of change were planted
Outside the rain fell dark and slow
While I pondered on this dangerous but irresistible pastime
I took a heavenly ride through our silence
I knew the moment had arrived
For killing the past and coming back to life
sábado, 18 de julho de 2009
Ligações mentais
Ontem coloquei "Pink Floyd Live in Pompeii" no dvd e fiz algumas ligações mentais, as quais me levam a escrever este post.
De início, ao ver Richard Wright e David Gilmour cantando Echoes, pensei que aquele era um belo retrato da juventude.
A identificação com a juventude foi estética e sonora: a barba espessa de Wright; o cabelo comprido de Gilmour (ambos à moda dos jovens setentistas); e uma interpretação intensa e poderosa da canção (como se as vozes viessem do alto de uma montanha, atravessassem um vale extenso e chegassem aos ouvidos de alguém situado a uns três quilômetros de distância...).
Depois dessa associação, pensei: "como o Richard Wright pode ter morrido? Não dá pra acreditar que ele morreu..."
A primeira ligação, creio seja óbvia, foi dos conceitos de força e intensidade com a ideia de juventude.
A segunda ligação mental foi entre a ideia de juventude e de imortalidade, pois, vendo Wright ainda jovem (em gravação de 37 anos atrás!), não pude acreditar que ele houvesse falecido (o que ocorreu há alguns meses).
Isso me levou a pensar: o que me faz ligar a ideias de intensidade, força e imortalidade à noção de juventude??? De onde vêm essas ligações mentais???
Tentando encontrar algum subsídio para responder a essas perguntas, procurei saber se existia algum mito antigo sobre juventude (a procura pelo mito talvez tenha sido sugestionada pela locação do show: Pompéia, Grécia, mitos...).
Digitando a expressão "juventude e mito" no Google, o primeiro link que apareceu foi o do artigo "A IDADE MÍDIA: UMA REFLEXÃO SOBRE O MITO DA JUVENTUDE NA CULTURA DE MASSA", da autora Letícia C.R. Vianna.
Parei a pesquisa por aí e fui ler o artigo. Dele extraí as seguintes conclusões:
a) minhas ligações mentais (acima relatadas) decorreram, em grande parte, da influência da "verdade da massa". A "verdade da massa" é que a juventude seria o ápice da realização humana, período em que se poderia gozar ilimitadamente - e sem o peso da responsabilidade - de todos os prazeres produzidos pela sociedade de consumo;
b) o enaltecimento da juventude é uma forma de negação da velhice e, consequentemente, uma negação da morte. O medo da morte gera esse apego indevido a algo que sabidamente é efêmero: a juventude biológica.
Depois dessas conclusões, parei de fazer ligações mentais.
"EU QUERIA TER o tempo e o sossego suficientes
Para não pensar em coisa nenhuma,
Para nem me sentir viver,
Para só saber de mim nos olhos dos outros, refletido"
(Alberto Caeiro).
De início, ao ver Richard Wright e David Gilmour cantando Echoes, pensei que aquele era um belo retrato da juventude.
A identificação com a juventude foi estética e sonora: a barba espessa de Wright; o cabelo comprido de Gilmour (ambos à moda dos jovens setentistas); e uma interpretação intensa e poderosa da canção (como se as vozes viessem do alto de uma montanha, atravessassem um vale extenso e chegassem aos ouvidos de alguém situado a uns três quilômetros de distância...).
Depois dessa associação, pensei: "como o Richard Wright pode ter morrido? Não dá pra acreditar que ele morreu..."
A primeira ligação, creio seja óbvia, foi dos conceitos de força e intensidade com a ideia de juventude.
A segunda ligação mental foi entre a ideia de juventude e de imortalidade, pois, vendo Wright ainda jovem (em gravação de 37 anos atrás!), não pude acreditar que ele houvesse falecido (o que ocorreu há alguns meses).
Isso me levou a pensar: o que me faz ligar a ideias de intensidade, força e imortalidade à noção de juventude??? De onde vêm essas ligações mentais???
Tentando encontrar algum subsídio para responder a essas perguntas, procurei saber se existia algum mito antigo sobre juventude (a procura pelo mito talvez tenha sido sugestionada pela locação do show: Pompéia, Grécia, mitos...).
Digitando a expressão "juventude e mito" no Google, o primeiro link que apareceu foi o do artigo "A IDADE MÍDIA: UMA REFLEXÃO SOBRE O MITO DA JUVENTUDE NA CULTURA DE MASSA", da autora Letícia C.R. Vianna.
Parei a pesquisa por aí e fui ler o artigo. Dele extraí as seguintes conclusões:
a) minhas ligações mentais (acima relatadas) decorreram, em grande parte, da influência da "verdade da massa". A "verdade da massa" é que a juventude seria o ápice da realização humana, período em que se poderia gozar ilimitadamente - e sem o peso da responsabilidade - de todos os prazeres produzidos pela sociedade de consumo;
b) o enaltecimento da juventude é uma forma de negação da velhice e, consequentemente, uma negação da morte. O medo da morte gera esse apego indevido a algo que sabidamente é efêmero: a juventude biológica.
Depois dessas conclusões, parei de fazer ligações mentais.
"EU QUERIA TER o tempo e o sossego suficientes
Para não pensar em coisa nenhuma,
Para nem me sentir viver,
Para só saber de mim nos olhos dos outros, refletido"
(Alberto Caeiro).
segunda-feira, 6 de julho de 2009
Nove de chão
Como escrevi tempos atrás (vide o post "Adeus, Ilha Metafórica"), eu estava de mudança.
Hoje estabeleci residência em minha nova cidade: "Faltante".
Faltante não é exatamente feia, não é exageradamente pequena, nem tampouco é ruim de se morar.
O que chama atenção nela é uma estranha falta que paira no ar. Não são os semáforos (não há), não são os elevadores (não há), não são as imobiliárias (não há)... aqui falta algo mais, algo indecifrável e intangível, que perpassa toda a cidade como a névoa que baixa nos dias frios (e sempre é frio).
Mas o curioso é que meu anfitrião na cidade - que dela está se despedindo, após 4 meses de estada - me disse:
_ A cidade não é ruim; o único problema dela são os nove de chão...
Nove de chão são os quilômetros que se percorrem em uma estrada de chão batido pra chegar até aqui.
Essa afirmação me chamou atenção e me fez pensar: tomara que em breve em também possa afirmar, convicto, que a única coisa que falta à Faltante é o asfalto nos nove de chão...
Hoje estabeleci residência em minha nova cidade: "Faltante".
Faltante não é exatamente feia, não é exageradamente pequena, nem tampouco é ruim de se morar.
O que chama atenção nela é uma estranha falta que paira no ar. Não são os semáforos (não há), não são os elevadores (não há), não são as imobiliárias (não há)... aqui falta algo mais, algo indecifrável e intangível, que perpassa toda a cidade como a névoa que baixa nos dias frios (e sempre é frio).
Mas o curioso é que meu anfitrião na cidade - que dela está se despedindo, após 4 meses de estada - me disse:
_ A cidade não é ruim; o único problema dela são os nove de chão...
Nove de chão são os quilômetros que se percorrem em uma estrada de chão batido pra chegar até aqui.
Essa afirmação me chamou atenção e me fez pensar: tomara que em breve em também possa afirmar, convicto, que a única coisa que falta à Faltante é o asfalto nos nove de chão...
sexta-feira, 3 de julho de 2009
"Que sensação é essa?"
"Que sensação é essa, quando você está se afastando das pessoas e elas retrocedem na planície até você ver o espectro delas se dissolvendo? - é o vasto mundo nos engolindo, e é o adeus. Mas nos jogamos em frente, rumo à próxima aventura louca sob o céu".
Jack Kerouac, On The Road.
Jack Kerouac, On The Road.
quinta-feira, 2 de julho de 2009
Como identificar um sádico...
Os dias recentes têm sido pródigos em eventos que permitiram reflexões filosóficas (algumas pretensamente sérias; outras um tanto prosaicas).
Aqui vai uma delas.
- Como identificar um sádico?
Sádico é quem se compraz com o sofrimento alheio, correto? Sim. Mas a simplicidade do conceito não assegura a identificação de uma manifestação sádica, pois o sádico geralmente se esconde atrás da sutileza de suas afirmações.
Tomemos como exemplo uma frase simples, muito ouvida por aí: "Fulano tem muito o que sofrer, para aprender a viver".
Essa frase até pode conter uma verdade em si: a de que o método empírico (tentativa e erro) muitas vezes assegura a evolução do indivíduo. Em simples palavras: às vezes é quebrando a cara que se consegue aprender a não repetir os errros.
Porém, para os sádicos, essa afirmação assume outra conotação.
Aqui, eu dividiria os sádicos em duas categorias: os conscientes e os inconscientes.
O sádico consciente, ao fazer tal afirmação ("tem que sofrer, para aprender"), não espera que "Fulano" aprenda alguma coisa com os sofrimentos naturais da vida. O sádico consciente espera apenas que "Fulano" sofra. E ponto final.
Ou seja, esses sádicos (e todos conhecemos algum) pensam no nível do "sofrer pelo sofrer", simplesmente porque desejam que determinadas pessoas (que eles escolhem por razões que só a psicanálise explicaria) passem por alguma espécie de dissabor.
Já os sádicos inconscientes não pensam nesse nível réles do "sofrer pelo sofrer". Eles apenas acreditam piamente na estapafúrdia teoria de que "só se conseguem as coisas na vida com MUITO.... [enchem a boca] sofrimento".
Isso tudo porque eles próprios passararam por algumas agruras para atingir algum objetivo, e, por isso, passaram a pressupor que todas as pessoas a sua volta necessitem, obrigatoriamente, vivenciar as mesmas situações para atingir um resultado semelhante...
Os sádicos inconscientes ignoram, contudo, a existência de múltiplos caminhos para se atingir um mesmo resultado; e ignoram também o fato de os indivíduos possuírem capacidades e aptidões distintas, razão pela qual alguns conseguem atingir determinado resultado sem muito esforço, enquanto outros precisam batalhar muito mais...
Porém, sejam conscientes ou inconscientes, os sádicos são, sobretudo, seres em conflito com sua autoimagem e inseguros com suas potencialidades.
É dizer, como não possuem uma autoestima que lhes permita alcançar o gozo por suas próprias ações, os sádicos vêem-se obrigados a gozar com o sofrimento alheio...
Não tendo pretensão de acertar, diria também que o sádico é alguém de afetos escassos ... pois não posso acreditar que alguém que tenha amor dentro de si, e receba amor de amigos e familiares, precise do insucesso alheio para ser feliz...
Aqui vai uma delas.
- Como identificar um sádico?
Sádico é quem se compraz com o sofrimento alheio, correto? Sim. Mas a simplicidade do conceito não assegura a identificação de uma manifestação sádica, pois o sádico geralmente se esconde atrás da sutileza de suas afirmações.
Tomemos como exemplo uma frase simples, muito ouvida por aí: "Fulano tem muito o que sofrer, para aprender a viver".
Essa frase até pode conter uma verdade em si: a de que o método empírico (tentativa e erro) muitas vezes assegura a evolução do indivíduo. Em simples palavras: às vezes é quebrando a cara que se consegue aprender a não repetir os errros.
Porém, para os sádicos, essa afirmação assume outra conotação.
Aqui, eu dividiria os sádicos em duas categorias: os conscientes e os inconscientes.
O sádico consciente, ao fazer tal afirmação ("tem que sofrer, para aprender"), não espera que "Fulano" aprenda alguma coisa com os sofrimentos naturais da vida. O sádico consciente espera apenas que "Fulano" sofra. E ponto final.
Ou seja, esses sádicos (e todos conhecemos algum) pensam no nível do "sofrer pelo sofrer", simplesmente porque desejam que determinadas pessoas (que eles escolhem por razões que só a psicanálise explicaria) passem por alguma espécie de dissabor.
Já os sádicos inconscientes não pensam nesse nível réles do "sofrer pelo sofrer". Eles apenas acreditam piamente na estapafúrdia teoria de que "só se conseguem as coisas na vida com MUITO.... [enchem a boca] sofrimento".
Isso tudo porque eles próprios passararam por algumas agruras para atingir algum objetivo, e, por isso, passaram a pressupor que todas as pessoas a sua volta necessitem, obrigatoriamente, vivenciar as mesmas situações para atingir um resultado semelhante...
Os sádicos inconscientes ignoram, contudo, a existência de múltiplos caminhos para se atingir um mesmo resultado; e ignoram também o fato de os indivíduos possuírem capacidades e aptidões distintas, razão pela qual alguns conseguem atingir determinado resultado sem muito esforço, enquanto outros precisam batalhar muito mais...
Porém, sejam conscientes ou inconscientes, os sádicos são, sobretudo, seres em conflito com sua autoimagem e inseguros com suas potencialidades.
É dizer, como não possuem uma autoestima que lhes permita alcançar o gozo por suas próprias ações, os sádicos vêem-se obrigados a gozar com o sofrimento alheio...
Não tendo pretensão de acertar, diria também que o sádico é alguém de afetos escassos ... pois não posso acreditar que alguém que tenha amor dentro de si, e receba amor de amigos e familiares, precise do insucesso alheio para ser feliz...
sexta-feira, 19 de junho de 2009
Uma história real
Há imagens cujo poder de sedução é muito grande.
Um dia desses, troquei de canal e apareceu a cena de um velhinho viajando por uma rodovia em um cortador de grama. O inusitado da situação prendeu minha atenção, e não consegui mais trocar de canal.
Tratava-se do filme “Uma história real” – cujo diretor, mais tarde vim a saber (com surpresa, dada a ausência de maiores bizarrices na película) era o David Lynch. O enredo baseia-se na história verídica (daí o nome brasileiro do filme) do Sr. Alvin Straight, um cidadão norte-americano que viajou cerca de 260 milhas pelo interior de seu país, para visitar o irmão que havia sofrido um derrame. Detalhe: o fez pilotando um cortador de grama adaptado, que rebocava um pequeno compartimento metálico utilizado como cama à noite.
O filme, além de ser muito interessante em seu conteúdo, marcou-me por uma cena específica (muito simbólica).
Um dia desses, troquei de canal e apareceu a cena de um velhinho viajando por uma rodovia em um cortador de grama. O inusitado da situação prendeu minha atenção, e não consegui mais trocar de canal.
Tratava-se do filme “Uma história real” – cujo diretor, mais tarde vim a saber (com surpresa, dada a ausência de maiores bizarrices na película) era o David Lynch. O enredo baseia-se na história verídica (daí o nome brasileiro do filme) do Sr. Alvin Straight, um cidadão norte-americano que viajou cerca de 260 milhas pelo interior de seu país, para visitar o irmão que havia sofrido um derrame. Detalhe: o fez pilotando um cortador de grama adaptado, que rebocava um pequeno compartimento metálico utilizado como cama à noite.
O filme, além de ser muito interessante em seu conteúdo, marcou-me por uma cena específica (muito simbólica).
O Sr. Straight, uma figura de saúde já combalida, pilota seu cortador de grama por uma estrada margeada por campos desabitados, quando nuvens escuras prenunciam uma chuva iminente. Assim que o som dos primeiros trovões atravessa o ar, o ancião avista uma estrutura de madeira com apenas duas paredes laterais e um teto, parecendo um pequeno celeiro inacabado. Percebendo ali um abrigo, o Sr. Straight se dirige (sempre vagarosamente) para o local, e, no exato instante que consegue estacionar o seu “veículo” dentro daquele espaço protegido, a chuva começa a cair sobre os campos ao redor...
Nesse momento, a câmera corta para o protagonista, em cuja expressão facial está estampado um contentamento extremamente singelo: a felicidade por encontrar, na premência das circunstâncias, um abrigo contra a chuva...
Essa cena mostra o quanto uma imagem pode seduzir, e que um dos meios de fazê-lo é evocar um sentimento inato a todas as pessoas. David Lynch sabe disso...
Afinal, quem nunca desejou, em meio a situações angustiantes, encontrar um espaço protegido (como aquele celeiro) e esperar o temporal passar?
Nesse momento, a câmera corta para o protagonista, em cuja expressão facial está estampado um contentamento extremamente singelo: a felicidade por encontrar, na premência das circunstâncias, um abrigo contra a chuva...
Essa cena mostra o quanto uma imagem pode seduzir, e que um dos meios de fazê-lo é evocar um sentimento inato a todas as pessoas. David Lynch sabe disso...
Afinal, quem nunca desejou, em meio a situações angustiantes, encontrar um espaço protegido (como aquele celeiro) e esperar o temporal passar?
quinta-feira, 11 de junho de 2009
Just for today
Nú
Quando estás vestida,
Ninguém imagina
Os mundos que escondes
Sob as tuas roupas.
(Assim, quando é dia,
Não temos noção
Dos astros que luzem
No profundo céu.
Mas a noite é nua,
E, nua na noite,
Palpitam teus mundos
E os mundos da noite).
(...)
Se nua, teus olhos
Ficam nus também:
Teu olhar, mais longe,
Mais lento, mais líquido.
Então, dentro deles,
Bóio, nado, salto
Baixo num mergulho
Perpendicular.
Baixo até o mais fundo
De teu ser, lá onde
Me sorri tu'alma
Nua, nua, nua...
(M. Bandeira).
Quando estás vestida,
Ninguém imagina
Os mundos que escondes
Sob as tuas roupas.
(Assim, quando é dia,
Não temos noção
Dos astros que luzem
No profundo céu.
Mas a noite é nua,
E, nua na noite,
Palpitam teus mundos
E os mundos da noite).
(...)
Se nua, teus olhos
Ficam nus também:
Teu olhar, mais longe,
Mais lento, mais líquido.
Então, dentro deles,
Bóio, nado, salto
Baixo num mergulho
Perpendicular.
Baixo até o mais fundo
De teu ser, lá onde
Me sorri tu'alma
Nua, nua, nua...
(M. Bandeira).
quarta-feira, 10 de junho de 2009
Ciclo perverso
Hoje ouvi um relato de sincera crueldade. Um casal discutia; o homem falava mais, e com maior potência, que a mulher. Ambos diziam palavras que só confirmavam que já não eram mais um casal; palavras que demonstravam a impossibilidade de ainda ficarem juntos.
Lá pelas tantas, um dos argumentos do marido foi o de a esposa não saber educar o filho. Disse que o filho de 16 anos só arrumava confusão, e que estava se tornando "um marginal". Ao ouvir isso, a mulher, até então cabisbaixa, levantou os olhos e disse:
_ Ele [o filho] está revoltado porque vê você me batendo e, como não pode bater em você, acaba descontando nas outras pessoas....
A verdade cruel e retumbante dessa afirmação me desconcertou.
Em primeiro lugar, porque me mostrou que, por trás da aparente simplicidade de espírito da esposa, havia uma mulher perspicaz, cujo sofrimento era maior justamente por ter noção do ciclo perverso de que fazia parte.
Em segundo lugar, a afirmação me desconcertou porque me fez sentir um pouco a revolta do jovem cuja mãe era espancada pelo pai... Acredito que um dos piores sentimentos seja o de se ver impotente em face da violência perpetrada contra um ente querido – e, dentre os entes queridos, creio que as mães ocupam um lugar de destaque.
Enfim, sei que a história desse casal não é inusitada. Pelo contrário, é a mesma história de milhões de casal no mundo. Mas será que percebemos que seremos atingidos por esse ciclo perverso de violência (do qual somos coadjuvantes)? Será que percebemos que a revolta do filho recairá sobre nós?
Essa é questão.
Lá pelas tantas, um dos argumentos do marido foi o de a esposa não saber educar o filho. Disse que o filho de 16 anos só arrumava confusão, e que estava se tornando "um marginal". Ao ouvir isso, a mulher, até então cabisbaixa, levantou os olhos e disse:
_ Ele [o filho] está revoltado porque vê você me batendo e, como não pode bater em você, acaba descontando nas outras pessoas....
A verdade cruel e retumbante dessa afirmação me desconcertou.
Em primeiro lugar, porque me mostrou que, por trás da aparente simplicidade de espírito da esposa, havia uma mulher perspicaz, cujo sofrimento era maior justamente por ter noção do ciclo perverso de que fazia parte.
Em segundo lugar, a afirmação me desconcertou porque me fez sentir um pouco a revolta do jovem cuja mãe era espancada pelo pai... Acredito que um dos piores sentimentos seja o de se ver impotente em face da violência perpetrada contra um ente querido – e, dentre os entes queridos, creio que as mães ocupam um lugar de destaque.
Enfim, sei que a história desse casal não é inusitada. Pelo contrário, é a mesma história de milhões de casal no mundo. Mas será que percebemos que seremos atingidos por esse ciclo perverso de violência (do qual somos coadjuvantes)? Será que percebemos que a revolta do filho recairá sobre nós?
Essa é questão.
sexta-feira, 5 de junho de 2009
O benefício da dúvida....
Dizem que no Direito Penal existe o chamado benefício da dúvida, pelo qual a incerteza sobre
o crime deve beneficiar o réu.
Isso significa dizer: a dúvida não pode levar a uma condenação.
Nesse caso, portanto, há uma regra para lidarmos com a incerteza.
E, nas outras áreas da vida, o que fazer diante de uma dúvida?
Há quem, pensando que o dia vindouro pode não chegar efetivamente, decida viver intensamente o momento presente. Há quem, pensando no risco (incerteza) de um empreendimento, veja uma oportunidade inexplorada para alcançar o êxito.
Mas há aqueles que, deparando-se com a dúvida, sofrem com a angústia da incerteza, e preferem: a) não agir até ser superada a dúvida (angústia paralisadora); b) ou antecipar mentalmente a solução da dúvida, o que é feito, via de regra, de forma desfavorável (angústia da condenação antecipada).
Um exemplo dessa última situação: o candidato de um concurso está respondendo a primeira questão de uma prova dissertativa. Após transcrever sua resposta, depara-se com uma dúvida sobre a correção da idéia que apresentou. Em segundos, por conta da angústia, já não tem dúvida, mas uma pseudocerteza de que a resposta fornecida está errada.
A partir desse momento, tenha ou não acertado a primeira questão, a angústia do candidato dificultará que efetivamente tenha êxito nas demais questões.
Essa é a angústia da condenação antecipada. Ou seja, acredita-se piamente que a incerteza se resolverá na forma de uma derrota.
E é interessante notar o quanto usamos esse mecanismo.
Quantas vezes, ao nos depararmos com a incerteza em relação a um relacionamento afetivo, acabamos por antecipar um desfecho pior do que o efetivamente necessário? Tudo porque interpretamos os sinais dúbios do objeto de nosso desejo (e sempre são dúbios) em nosso desfavor.
Portanto, presumir indevidamente que já se perdeu a batalha pode precipitar uma derrota ainda não consumada. Mais grave ainda: isso pode determinar uma perda que poderia ser evitada com uma postura imparcial diante da incerteza.
A maneira de evitar a angústia da condenação antecipada? Quisera saber.
Mas duas ideias me acalentam boas esperanças. Uma é não deixar que o medo nos leve à fantasia. Isto é, o medo de perder, de não ser amado, de não ser reconhecido, deve ser tratado como parte integrante da vida, mas não pode conduzir à fantasia de que nenhuma batalha será perdida, pois isso só ocorre quando nenhuma batalha é disputada.
A segunda ideia é usar o benefício da dúvida: o que os dados do destino ainda não decidiram, não cabe a nós decidirmos antecipadamente.
Mas se quisermos pressupor um resultado, que o façamos, ao menos, em nosso favor, de forma a gozar do prazer de cada momento, enquanto os dados do destino ainda rolam na mesa do acaso...
(escrito ouvindo:
"Nas grandes cidades,
No pequeno dia-a-dia,
O medo nos leva a tudo
Sobretudo à fantasia...
Então erguemos muros
que nos dão a garantia
de que morreremos cheios
de uma vida tão vazia...." ).
o crime deve beneficiar o réu.
Isso significa dizer: a dúvida não pode levar a uma condenação.
Nesse caso, portanto, há uma regra para lidarmos com a incerteza.
E, nas outras áreas da vida, o que fazer diante de uma dúvida?
Há quem, pensando que o dia vindouro pode não chegar efetivamente, decida viver intensamente o momento presente. Há quem, pensando no risco (incerteza) de um empreendimento, veja uma oportunidade inexplorada para alcançar o êxito.
Mas há aqueles que, deparando-se com a dúvida, sofrem com a angústia da incerteza, e preferem: a) não agir até ser superada a dúvida (angústia paralisadora); b) ou antecipar mentalmente a solução da dúvida, o que é feito, via de regra, de forma desfavorável (angústia da condenação antecipada).
Um exemplo dessa última situação: o candidato de um concurso está respondendo a primeira questão de uma prova dissertativa. Após transcrever sua resposta, depara-se com uma dúvida sobre a correção da idéia que apresentou. Em segundos, por conta da angústia, já não tem dúvida, mas uma pseudocerteza de que a resposta fornecida está errada.
A partir desse momento, tenha ou não acertado a primeira questão, a angústia do candidato dificultará que efetivamente tenha êxito nas demais questões.
Essa é a angústia da condenação antecipada. Ou seja, acredita-se piamente que a incerteza se resolverá na forma de uma derrota.
E é interessante notar o quanto usamos esse mecanismo.
Quantas vezes, ao nos depararmos com a incerteza em relação a um relacionamento afetivo, acabamos por antecipar um desfecho pior do que o efetivamente necessário? Tudo porque interpretamos os sinais dúbios do objeto de nosso desejo (e sempre são dúbios) em nosso desfavor.
Portanto, presumir indevidamente que já se perdeu a batalha pode precipitar uma derrota ainda não consumada. Mais grave ainda: isso pode determinar uma perda que poderia ser evitada com uma postura imparcial diante da incerteza.
A maneira de evitar a angústia da condenação antecipada? Quisera saber.
Mas duas ideias me acalentam boas esperanças. Uma é não deixar que o medo nos leve à fantasia. Isto é, o medo de perder, de não ser amado, de não ser reconhecido, deve ser tratado como parte integrante da vida, mas não pode conduzir à fantasia de que nenhuma batalha será perdida, pois isso só ocorre quando nenhuma batalha é disputada.
A segunda ideia é usar o benefício da dúvida: o que os dados do destino ainda não decidiram, não cabe a nós decidirmos antecipadamente.
Mas se quisermos pressupor um resultado, que o façamos, ao menos, em nosso favor, de forma a gozar do prazer de cada momento, enquanto os dados do destino ainda rolam na mesa do acaso...
(escrito ouvindo:
"Nas grandes cidades,
No pequeno dia-a-dia,
O medo nos leva a tudo
Sobretudo à fantasia...
Então erguemos muros
que nos dão a garantia
de que morreremos cheios
de uma vida tão vazia...." ).
sexta-feira, 22 de maio de 2009
CARTOLA: A Sorrir.
Cheguei em casa (já estou chamando quarto de hotel de “casa”) cheio planos, mas tive de subir pelas escadas: não havia energia pra mover os elevadores. Não havia energia pra mover nada; só essas idéias.
Daí me dei conta (e logo me esquecerei) que nunca sabemos quando a falta de algo vai nos deixar em um quarto escuro, só com os planos concebidos e não executados... "Tantos planes, tantos planes vueltos espuma..."
Isso me remeteu à noite de ontem, quando veio até minha mesa (em um restaurante da cidade), um senhor de paletó, chapéu Panamá, maquiagem de palhaço melancólico, e cavaquinho em punho. Era um artista de rua. Perguntou se podia cantar uma música, e iniciou a canção (muito bem cantada):
A sorrir
Eu pretendo levar a vida
Pois chorando
Eu vi a mocidade perdida
Fim da tempestade
O sol nascerá
Finda esta saudade
Hei de ter outro alguém para amar
Aquilo fez todo sentido. Assim como a falta, agora da luz, está fazendo. E a ausência de algo não é de todo ruim, porque nos obriga a sermos mais presentes, e menos hipotéticos. Mais realizações e menos cogitações, como esse texto, que sai assim às pressas e à primeira palavra, pois a bateria do note também vai faltar... A ausência leva à urgência, e esta nos leva a sermos menos exigentes com nós mesmos...
Se não fosse a urgência de agir, talvez nunca realizássemos certas coisas, em relação às quais ensaiamos demais...
¿Quien sabe cuándo,
cuándo es el momento de decir: ahora?
Si todo alrededor te está gritando:
¡Sin demora, sin demora!
(Jorge Drexler)
Daí me dei conta (e logo me esquecerei) que nunca sabemos quando a falta de algo vai nos deixar em um quarto escuro, só com os planos concebidos e não executados... "Tantos planes, tantos planes vueltos espuma..."
Isso me remeteu à noite de ontem, quando veio até minha mesa (em um restaurante da cidade), um senhor de paletó, chapéu Panamá, maquiagem de palhaço melancólico, e cavaquinho em punho. Era um artista de rua. Perguntou se podia cantar uma música, e iniciou a canção (muito bem cantada):
A sorrir
Eu pretendo levar a vida
Pois chorando
Eu vi a mocidade perdida
Fim da tempestade
O sol nascerá
Finda esta saudade
Hei de ter outro alguém para amar
Aquilo fez todo sentido. Assim como a falta, agora da luz, está fazendo. E a ausência de algo não é de todo ruim, porque nos obriga a sermos mais presentes, e menos hipotéticos. Mais realizações e menos cogitações, como esse texto, que sai assim às pressas e à primeira palavra, pois a bateria do note também vai faltar... A ausência leva à urgência, e esta nos leva a sermos menos exigentes com nós mesmos...
Se não fosse a urgência de agir, talvez nunca realizássemos certas coisas, em relação às quais ensaiamos demais...
¿Quien sabe cuándo,
cuándo es el momento de decir: ahora?
Si todo alrededor te está gritando:
¡Sin demora, sin demora!
(Jorge Drexler)
quinta-feira, 14 de maio de 2009
Tudo é por acaso. Nada é por acaso.
O Saramago conta a história de um homem que possui um duplicado; uma cópia fisicamente idêntica de sua pessoa, porém com personalidade própria e distinta... O livro nem é dos meus preferidos, mas me lembrei dele agora mesmo.
Olhei para meus sapatos e percebi que estavam lustrosos como nunca. Claro: hoje recebi uma “graxa” de um desses meninos que ganham a vida lustrando sapatos alheios. Custou dois reais. O pastel folhado eu dei de graça.
Uma vez, um italiano, morando de favor no Brasil, contou-me que não aceitava a idéia de que a doméstica de seus hospedeiros lavasse seu prato. Disse que o mínimo que um homem (“digno” ficou subentendido) deve fazer é limpar o prato em que comeu...
Ainda penso nisso. E, analogamente, nunca quis que engraxassem meus sapatos. Talvez por pensar que o mínimo que um homem (digno?) deve fazer é lustrar os próprios calçados... e talvez por enxergar um tanto de submissão no ato de alguém fazê-lo por mim.
Mas principalmente me opunha à idéia por atribuir a essa cena um simbolismo de que, na vida, os dados do destino só beneficiam uns poucos; os demais têm de lidar com a má sorte inicial (e alguns pouquíssimos desses conseguem transformá-la em êxito).
Hoje, no entanto, sentimentos maiores levaram-me a aceitar os serviços de um engraxate. Explico.
Inicialmente, eu recusei a “graxa” oferecida (justamente pela minha contrariedade à idéia). No entanto, decidi pagar um pastel para o engraxate.
Enquanto ele esperava que lhe trouxessem o salgado, vi que insistia em prestar seus serviços.
De repente me ocorreu que aquele rapaz iria se sentir mais digno ao prestar seus serviços em troca do pastel, ao invés de receber a comida como uma simples esmola.
Pensando nisso (e pensando rapidamente que a dignidade dele era mais importante que minhas restrições à situação), resolvi aceitar os serviços do engraxate.
Enquanto isso, descobri que ele estudava na quinta série, tinha treze anos, e que participava de uma escolhinha de futebol. Porém, o que mais me chamou a atenção foi o fato de seu primeiro nome ser idêntico ao meu.
Daí por que pensei no “Homem Duplicado” do Saramago, mas não no sentido de possível identidade física entre mim e outra pessoa, e sim no sentido de que eu e o engraxate temos o mesmo prenome, mas vidas completamente diferentes, e que, apenas por alguma aleatoriedade inexplicável do destino, não era eu quem estava engraxando os sapatos dele...
Este post poderia ser o número dois de uma série chamada “exercício de troca de lugar”, iniciada com o post “A minha rota 66”, em cujo relato eu também me coloquei no lugar de outra pessoa (a qual, presumi, deveria levar uma vida menos fácil do que a minha).
Eu ter escrito dois textos com o mesmo sentimento subjacente não é mera coincidência.
Aliás, à exceção das coisas intangíveis, nada é por acaso... se quisermos que não seja.
Olhei para meus sapatos e percebi que estavam lustrosos como nunca. Claro: hoje recebi uma “graxa” de um desses meninos que ganham a vida lustrando sapatos alheios. Custou dois reais. O pastel folhado eu dei de graça.
Uma vez, um italiano, morando de favor no Brasil, contou-me que não aceitava a idéia de que a doméstica de seus hospedeiros lavasse seu prato. Disse que o mínimo que um homem (“digno” ficou subentendido) deve fazer é limpar o prato em que comeu...
Ainda penso nisso. E, analogamente, nunca quis que engraxassem meus sapatos. Talvez por pensar que o mínimo que um homem (digno?) deve fazer é lustrar os próprios calçados... e talvez por enxergar um tanto de submissão no ato de alguém fazê-lo por mim.
Mas principalmente me opunha à idéia por atribuir a essa cena um simbolismo de que, na vida, os dados do destino só beneficiam uns poucos; os demais têm de lidar com a má sorte inicial (e alguns pouquíssimos desses conseguem transformá-la em êxito).
Hoje, no entanto, sentimentos maiores levaram-me a aceitar os serviços de um engraxate. Explico.
Inicialmente, eu recusei a “graxa” oferecida (justamente pela minha contrariedade à idéia). No entanto, decidi pagar um pastel para o engraxate.
Enquanto ele esperava que lhe trouxessem o salgado, vi que insistia em prestar seus serviços.
De repente me ocorreu que aquele rapaz iria se sentir mais digno ao prestar seus serviços em troca do pastel, ao invés de receber a comida como uma simples esmola.
Pensando nisso (e pensando rapidamente que a dignidade dele era mais importante que minhas restrições à situação), resolvi aceitar os serviços do engraxate.
Enquanto isso, descobri que ele estudava na quinta série, tinha treze anos, e que participava de uma escolhinha de futebol. Porém, o que mais me chamou a atenção foi o fato de seu primeiro nome ser idêntico ao meu.
Daí por que pensei no “Homem Duplicado” do Saramago, mas não no sentido de possível identidade física entre mim e outra pessoa, e sim no sentido de que eu e o engraxate temos o mesmo prenome, mas vidas completamente diferentes, e que, apenas por alguma aleatoriedade inexplicável do destino, não era eu quem estava engraxando os sapatos dele...
Este post poderia ser o número dois de uma série chamada “exercício de troca de lugar”, iniciada com o post “A minha rota 66”, em cujo relato eu também me coloquei no lugar de outra pessoa (a qual, presumi, deveria levar uma vida menos fácil do que a minha).
Eu ter escrito dois textos com o mesmo sentimento subjacente não é mera coincidência.
Aliás, à exceção das coisas intangíveis, nada é por acaso... se quisermos que não seja.
domingo, 10 de maio de 2009
A minha rota 66
A rota 66 atravessava os Estados Unidos de Leste a Oeste. Foi por essa highway que Jack Kerouac cruzou o país há mais de cinquenta anos. As experiências que aquela viagem maluca lhe proporcionou foram eternizadas no livro On The Road, sobre o qual comentei tempos atrás no blog.
Hoje tive meu dia de rota 66: cruzei boa parte do Estado, indo de oeste a leste em uma linha reta e exaustiva.
A viagem, se não me rendeu experiências lisérgicas como as vividas por Kerouac, também não foi totalmente desprovida de momentos propícios para reflexão.
Eis um deles.
Como havia partido após o almoço, os primeiros cem quilômetros de estrada foram de uma aborrecida sonolência. Nem mesmo a discografia completa do Led, tocando em bom som no carro, conseguia me animar.
Então resolvi parar para um café.
Assim que cheguei à mais decente loja de conveniência do oeste, notei do lado de fora um velho sentado em uma cadeira de plástico, olhando pro vazio à frente. Ele tinha mais ou menos oitenta e vários anos, saúde aparentemente debilitada e aquele olhar vago de quem parece divisar fantasmas no horizonte.
Então pensei: um dia também estarei velho assim, e quem sabe vou estar sentado numa cadeira de plástico, à margem de uma rodovia esquecida, olhando pro vazio e pensando na vida passada...
Guardei aquela imagem no bolso da memória e entrei na loja de conveniências. Enquanto esperava o café, escutei alguém na televisão, explicando pro Faustão (sim, o Fausto Silva) sobre Cronos, divindade grega que controlava o TEMPO e que engoliu seus filhos (todos menos Zeus) por temer que o destronassem.
Ainda escutei o entrevistado dizer: daí por que se diz que o “tempo engole seus filhos”.
Bebi o café (que surtiu o efeito esperado) e segui viagem pensado naquela cena: o velho do olhar perdido à frente da loja e, lá dentro, uma explicação sobre o tempo engolindo seus filhos.
Logo me lembrei que a menos de 24 horas havia conversado com uma amiga sobre a passagem veloz do tempo; e que havíamos lido sobre "o tempo presente, os homens presentes, a vida presente" (Drummond, Mãos dadas).
Tudo isso me fez pensar: seria mera coincidência a reunião, em um mesmo contexto, de tantas referências explícitas ao transcurso inexorável do tempo?
Talvez sim. Talvez não.
Mas, como me disseram (e eu acreditei), as coisas todas são vazias; somos nós que as preenchemos de sentido.
Assim, no meu caso, eu preenchi esses eventos com o sentido de uma ordem, uma ordem emanada de uma divindade cega e implacável: "não se preocupe desnecessariamente, não tenha pressa desnecessariamente; as coisas mais preciosas e as coisas mais vis têm todas o mesmo destino: ser engolidas pelo tempo".
Hoje tive meu dia de rota 66: cruzei boa parte do Estado, indo de oeste a leste em uma linha reta e exaustiva.
A viagem, se não me rendeu experiências lisérgicas como as vividas por Kerouac, também não foi totalmente desprovida de momentos propícios para reflexão.
Eis um deles.
Como havia partido após o almoço, os primeiros cem quilômetros de estrada foram de uma aborrecida sonolência. Nem mesmo a discografia completa do Led, tocando em bom som no carro, conseguia me animar.
Então resolvi parar para um café.
Assim que cheguei à mais decente loja de conveniência do oeste, notei do lado de fora um velho sentado em uma cadeira de plástico, olhando pro vazio à frente. Ele tinha mais ou menos oitenta e vários anos, saúde aparentemente debilitada e aquele olhar vago de quem parece divisar fantasmas no horizonte.
Então pensei: um dia também estarei velho assim, e quem sabe vou estar sentado numa cadeira de plástico, à margem de uma rodovia esquecida, olhando pro vazio e pensando na vida passada...
Guardei aquela imagem no bolso da memória e entrei na loja de conveniências. Enquanto esperava o café, escutei alguém na televisão, explicando pro Faustão (sim, o Fausto Silva) sobre Cronos, divindade grega que controlava o TEMPO e que engoliu seus filhos (todos menos Zeus) por temer que o destronassem.
Ainda escutei o entrevistado dizer: daí por que se diz que o “tempo engole seus filhos”.
Bebi o café (que surtiu o efeito esperado) e segui viagem pensado naquela cena: o velho do olhar perdido à frente da loja e, lá dentro, uma explicação sobre o tempo engolindo seus filhos.
Logo me lembrei que a menos de 24 horas havia conversado com uma amiga sobre a passagem veloz do tempo; e que havíamos lido sobre "o tempo presente, os homens presentes, a vida presente" (Drummond, Mãos dadas).
Tudo isso me fez pensar: seria mera coincidência a reunião, em um mesmo contexto, de tantas referências explícitas ao transcurso inexorável do tempo?
Talvez sim. Talvez não.
Mas, como me disseram (e eu acreditei), as coisas todas são vazias; somos nós que as preenchemos de sentido.
Assim, no meu caso, eu preenchi esses eventos com o sentido de uma ordem, uma ordem emanada de uma divindade cega e implacável: "não se preocupe desnecessariamente, não tenha pressa desnecessariamente; as coisas mais preciosas e as coisas mais vis têm todas o mesmo destino: ser engolidas pelo tempo".
Pintura de Goya: Cronos engolindo seus filhos.
domingo, 3 de maio de 2009
Adeus, Ilha Metafórica*
O amor tem de nos alimentar e nos consumir ao mesmo tempo. Se só alimenta, enche; se só consome, esvazia. Pensando assim, creio que tive uma relação de amor com a Ilha Metafórica, pois ela me alimentava (de espaço e ócio) e me consumia (com idéias e planos).
Esse blog, por exemplo, foi concebido e gestado na Ilha. Nasceu sob o signo da solidão, e deu seus primeiros passos nos amplos campos que se estendiam à vista da janela de meu apartamento...
Hoje não moro mais na Ilha.
E vejo claramente a diferença que faz: ainda estou cheio de idéias e planos, mas aquele espaço todo e aquele ócio ficaram para trás.
Hoje meus horizontes estão próximos demais; e o tempo é premente. Isso comprime meu ser, fazendo com que eu me sinta um compartimento pequeno para tantos acontecimentos.
Sei que depende de mim encontrar um lugar no mundo que me alimente e me consuma, como o amor que perseguimos.
É isso que me faz caminhar.
“Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo....
Por isso a minha aldeia é grande como outra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista a chave,
Escondem o horizonte, empurram nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a única riqueza é ver”.
(Alberto Caeiro, em "O Guardador de Rebanhos").
*A Ilha Metafórica nunca foi conceituada neste blog (nem precisaria), mas foi mencionada pela primeira vez no post do dia 24 de janeiro de 2009.
Esse blog, por exemplo, foi concebido e gestado na Ilha. Nasceu sob o signo da solidão, e deu seus primeiros passos nos amplos campos que se estendiam à vista da janela de meu apartamento...
Hoje não moro mais na Ilha.
E vejo claramente a diferença que faz: ainda estou cheio de idéias e planos, mas aquele espaço todo e aquele ócio ficaram para trás.
Hoje meus horizontes estão próximos demais; e o tempo é premente. Isso comprime meu ser, fazendo com que eu me sinta um compartimento pequeno para tantos acontecimentos.
Sei que depende de mim encontrar um lugar no mundo que me alimente e me consuma, como o amor que perseguimos.
É isso que me faz caminhar.
“Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo....
Por isso a minha aldeia é grande como outra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista a chave,
Escondem o horizonte, empurram nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a única riqueza é ver”.
(Alberto Caeiro, em "O Guardador de Rebanhos").
*A Ilha Metafórica nunca foi conceituada neste blog (nem precisaria), mas foi mencionada pela primeira vez no post do dia 24 de janeiro de 2009.
quarta-feira, 29 de abril de 2009
Não há arrependimentos...
Bem, vou ser breve, pois estou em uma lan house e preciso correr pra casa. Há coisas a fazer.
Mas compartilho uma das frases mais inspiradoras que li nos últimos tempos, e absolutamente apropriada ao presente momento. Veio de uma amiga, que disse para eu colocar amor em todos meus passos, pois
"não há arrependimentos quando há amor"...
Obrigado pelo incentivo.
Mas compartilho uma das frases mais inspiradoras que li nos últimos tempos, e absolutamente apropriada ao presente momento. Veio de uma amiga, que disse para eu colocar amor em todos meus passos, pois
"não há arrependimentos quando há amor"...
Obrigado pelo incentivo.
sexta-feira, 17 de abril de 2009
Palavra repetida
“A falta que todo homem carrega consigo o tempo todo é aquela que explica e dá sentido a boa parte dos seus atos e lapsos.
Eis a palavra, testemunhando a ausência e a falta”. Gustavo Bernardo, Redação Inquieta.
Tenho a sorte de trabalhar com a escrita. Não exatamente com a escrita, mas utilizando as palavras para meu sustento (“lutar com palavras é a luta mais vã, entanto lutamos mal rompe a manhã...” O Lutador, Drummond).
E os textos que escrevo a trabalho, embora tão formais como exige o meio (não me refiro ao blog, evidentemente), servem de espelho à minha falta.
Sim, somos seres faltantes. É uma condição humana. Não sentir falta é estar doente, ou morto. Não é essa a novidade que quero contar.
Arriscaria dizer que todos põem sua falta em algo do dia-a-dia: na fala, nos gestos, nas roupas, no caminhar...
Eu, como dito, deixo que minha falta se misture às palavras que escolho para me comunicar (essa constatação, devo dizer, é relativamente recente para mim: há uns dois anos apenas percebi o quanto posso ler nas entrelinhas das minhas palavras, sejam elas ditas ou escritas).
Pois bem, um dia desses, escrevendo uma anotação qualquer, percebi o quanto havia usado repetidamente uma determinada palavra, a palavra “já”.
A partir de então, comecei a prestar a atenção nos textos que escrevia, e me dei conta da utilização constante e abusiva do “já”. Estava escrevendo: “já que isso havia acontecido” e “já em relação a tal coisa” e “já havia sido dito” e “já mencionado” e daí pra fora...
Sempre vi como pobreza do escritor a repetição de palavras (salvo quando exigida para a segurança e clareza de certos textos). Mas nesse caso, a repetição em que estava incorrendo aborreceu-me menos pela questão formal do que pela questão simbólica.
Explicando, o que me deixou inquieto não foi detectar nos meus textos um defeito que sempre me desagradou nas obras alheias; o que me deixou inquieto foi desconhecer a razão pela qual eu estava repetindo especificamente a palavra “já”.
Obviamente nem me ocorreu que fosse mero acaso a eleição daquela palavra. A psicanálise não me deixa acreditar em acasos, quando se trata de ações humanas.
Além disso, se escrever é um exercício de auto-afirmação, há de se admitir que as palavras que não escolhemos – mas que vem à tona, do poço escuro do inconsciente – também querem afirmar algo, quererem mostrar algo que não desejamos ver conscientemente...
Ou seja, “a palavra testemunha a ausência e a falta”. E alguma falta, no meu caso, estava sendo testemunhada pela palavra repetida.
Nem preciso dizer que acabei realizando uma espécie de "auto-análise" a partir da palavra “já”, tentando buscar os significados inconscientes que ela tinha pra mim.
O resultado disso?
Nada de diferente à minha volta.
Mas posso entender agora, com relativa clareza (nunca há certeza), a mensagem que palavra repetida trazia... e sobretudo posso ver qual era a falta que ela testemunhava.
(e dar-se conta é sempre o primeiro passo...).
Eis a palavra, testemunhando a ausência e a falta”. Gustavo Bernardo, Redação Inquieta.
Tenho a sorte de trabalhar com a escrita. Não exatamente com a escrita, mas utilizando as palavras para meu sustento (“lutar com palavras é a luta mais vã, entanto lutamos mal rompe a manhã...” O Lutador, Drummond).
E os textos que escrevo a trabalho, embora tão formais como exige o meio (não me refiro ao blog, evidentemente), servem de espelho à minha falta.
Sim, somos seres faltantes. É uma condição humana. Não sentir falta é estar doente, ou morto. Não é essa a novidade que quero contar.
Arriscaria dizer que todos põem sua falta em algo do dia-a-dia: na fala, nos gestos, nas roupas, no caminhar...
Eu, como dito, deixo que minha falta se misture às palavras que escolho para me comunicar (essa constatação, devo dizer, é relativamente recente para mim: há uns dois anos apenas percebi o quanto posso ler nas entrelinhas das minhas palavras, sejam elas ditas ou escritas).
Pois bem, um dia desses, escrevendo uma anotação qualquer, percebi o quanto havia usado repetidamente uma determinada palavra, a palavra “já”.
A partir de então, comecei a prestar a atenção nos textos que escrevia, e me dei conta da utilização constante e abusiva do “já”. Estava escrevendo: “já que isso havia acontecido” e “já em relação a tal coisa” e “já havia sido dito” e “já mencionado” e daí pra fora...
Sempre vi como pobreza do escritor a repetição de palavras (salvo quando exigida para a segurança e clareza de certos textos). Mas nesse caso, a repetição em que estava incorrendo aborreceu-me menos pela questão formal do que pela questão simbólica.
Explicando, o que me deixou inquieto não foi detectar nos meus textos um defeito que sempre me desagradou nas obras alheias; o que me deixou inquieto foi desconhecer a razão pela qual eu estava repetindo especificamente a palavra “já”.
Obviamente nem me ocorreu que fosse mero acaso a eleição daquela palavra. A psicanálise não me deixa acreditar em acasos, quando se trata de ações humanas.
Além disso, se escrever é um exercício de auto-afirmação, há de se admitir que as palavras que não escolhemos – mas que vem à tona, do poço escuro do inconsciente – também querem afirmar algo, quererem mostrar algo que não desejamos ver conscientemente...
Ou seja, “a palavra testemunha a ausência e a falta”. E alguma falta, no meu caso, estava sendo testemunhada pela palavra repetida.
Nem preciso dizer que acabei realizando uma espécie de "auto-análise" a partir da palavra “já”, tentando buscar os significados inconscientes que ela tinha pra mim.
O resultado disso?
Nada de diferente à minha volta.
Mas posso entender agora, com relativa clareza (nunca há certeza), a mensagem que palavra repetida trazia... e sobretudo posso ver qual era a falta que ela testemunhava.
(e dar-se conta é sempre o primeiro passo...).
quinta-feira, 2 de abril de 2009
A planta da infância
"Que culpa temos nós dessa planta da infância,
de sua sedução, de seu viço, de sua constância?"
(Jorge de Lima)
Não sei ao certo o que escrever... mas estou sob a influência de uma conversa que tive no último final de semana... e quando algo não sai da minha cabeça, é porque devo escrever sobre isso.
Bem, a conversa era sobre seguir o próprio desejo, a despeito de o quanto possamos ser criticados, censurados e mesmo excluídos por conta dessa decisão.
Quando minha interlocutora comentou que se sentia recriminada pela sociedade (e especialmente por sua mãe), eu respondi: o que importa é que você fez o que desejava, mas não pode ter a ilusão de “viver é indolor” (assumi que a frase “La ilusión de que vivir es indoloro” não era minha, mas do Jorge Drexler – Soledad).
Falei também que ninguém tem culpa de ser como é. A culpa, na verdade, é de nossos pais. Mas eles também não são culpados, os culpados são os pais deles, que os fizeram ser como são... e assim por diante, culpa transferida para as gerações anteriores, até remontar o primeiro pecado, o pecado original (que, dizem uns, não foi o ato de desejar, mas o ato de ter consciência de si, tomar pra si a sabedoria que só deus poderia ter...).
Enfim, ninguém tem culpa da planta da infância, como diria o Jorge de Lima.
Mas é claro que essa proposição (ninguém tem culpa da planta da infância) não significa transferir toda responsabilidade por nossa personalidade a nossos pais. Não é isso.
É apenas reconhecer que, no processo de formação do indivíduo, atua essa força suprema, avassaladora, personificada no pai e na mãe. A lei e o amor tomam corpo nessas pessoas que moldam, pro bem e pro mal, o barro informe da nossa psique infantil...
(não falarei de Freud; não quero ser chato: a psicanálise é tão fascinante quanto impopular nesse país).
O fato é que muito da nossa angústia pode ser extravasada quando identificamos a origem das questões de nossa personalidade – e a origem é quase sempre tão importante quanto remota...
Então, com esse texto cheio de reticências (como está a minha compreensão sobre as coisas), acho que estou dizendo que a vida, embora não seja indolor (como canta o Jorge Drexler) pode ser menos tormentosa, menos opressora.
Mas pra isso é necessário navegar em águas mais profundas...
“Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor...
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.”
(Fernando Pessoa).
de sua sedução, de seu viço, de sua constância?"
(Jorge de Lima)
Não sei ao certo o que escrever... mas estou sob a influência de uma conversa que tive no último final de semana... e quando algo não sai da minha cabeça, é porque devo escrever sobre isso.
Bem, a conversa era sobre seguir o próprio desejo, a despeito de o quanto possamos ser criticados, censurados e mesmo excluídos por conta dessa decisão.
Quando minha interlocutora comentou que se sentia recriminada pela sociedade (e especialmente por sua mãe), eu respondi: o que importa é que você fez o que desejava, mas não pode ter a ilusão de “viver é indolor” (assumi que a frase “La ilusión de que vivir es indoloro” não era minha, mas do Jorge Drexler – Soledad).
Falei também que ninguém tem culpa de ser como é. A culpa, na verdade, é de nossos pais. Mas eles também não são culpados, os culpados são os pais deles, que os fizeram ser como são... e assim por diante, culpa transferida para as gerações anteriores, até remontar o primeiro pecado, o pecado original (que, dizem uns, não foi o ato de desejar, mas o ato de ter consciência de si, tomar pra si a sabedoria que só deus poderia ter...).
Enfim, ninguém tem culpa da planta da infância, como diria o Jorge de Lima.
Mas é claro que essa proposição (ninguém tem culpa da planta da infância) não significa transferir toda responsabilidade por nossa personalidade a nossos pais. Não é isso.
É apenas reconhecer que, no processo de formação do indivíduo, atua essa força suprema, avassaladora, personificada no pai e na mãe. A lei e o amor tomam corpo nessas pessoas que moldam, pro bem e pro mal, o barro informe da nossa psique infantil...
(não falarei de Freud; não quero ser chato: a psicanálise é tão fascinante quanto impopular nesse país).
O fato é que muito da nossa angústia pode ser extravasada quando identificamos a origem das questões de nossa personalidade – e a origem é quase sempre tão importante quanto remota...
Então, com esse texto cheio de reticências (como está a minha compreensão sobre as coisas), acho que estou dizendo que a vida, embora não seja indolor (como canta o Jorge Drexler) pode ser menos tormentosa, menos opressora.
Mas pra isso é necessário navegar em águas mais profundas...
“Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor...
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.”
(Fernando Pessoa).
domingo, 22 de março de 2009
Chocolate
Sentei e comi um chocolate. E pensei: "alguém fez esse chocolate". Esse alguém esteve em uma fábrica e exerceu uma atividade bem específica na linha de produção; qualquer atividade que ainda não foi atribuída a uma máquina. Talvez separou os chocolates defeituosos dos chocolates aprovados, talvez acionou o botão de adicionar castanhas. Seja qual for sua participação no processo de fabricação, o "alguém" deve ter repetido a mesma tarefa uma centena de vezes.
Existem vários empregos que me angustiam. Mas trabalhar em uma fábrica é algo simbólico. Não por causa do Charles Chaplin, apertando parafusos no Tempos Modernos.
Mas porque ser um operário de uma linha de produção é um dos símbolos mais perfeitos da despersonalização do indivíduo.
É a metáfora ideal sobre ser uma engrenagem em uma máquina.
A peça humana, embora essencial para o resultado final, é substituível; é desinteressada (não há interesse pessoal envolvido na sua atividade); é automatizada (seus movimentos são sempre os mesmos); e é desinvestida de qualquer senso crítico sobre seus atos (ou alguém imagina que o operário pergunte a si mesmo: "o mundo precisa tanto assim de um celular com televisão, a ponto de eu ter de trabalhar doze horas por dia para montá-lo?").
Não quero propor nenhuma discussão sobre as estruturas da sociedade, sobre o capitalismo ou sobre alternativas a ele. Essa conversa, aliás, por demais me aborrece, uma vez que 90% das pessoas que eu conhecço tem uma visão maniqueísta sobre o assunto. Só sabem dizer que o capitalismo é o MAL e o comunismo é o BEM, ou vice-versa.
Mas a questão da despersonalização não sai da minha cabeça...
-------------
...Sísifo enganou e aprisionou a Morte. Com isso, ninguém mais morreu.
Plutão, deus do inferno, indignou-se com Sísifo, pois, sem a Morte trabalhando, o inferno estava sem novos hóspedes. Para resolver a situação, Plutão pediu ajuda a Marte, deus da guerra, e ambos libertaram a Morte.
Como lição pelo desaforo causado aos deuses, foi imposta uma pena a Sísifo: por toda eternidade, ele teve de rolar uma imensa rocha até o cume de uma montanha. E, sempre que chegava ao topo, a pedra rolava novamente para a base da montanha, obrigando a Sísífo repetir eternamente aquela tarefa.
A respeito disso, Gustavo Bernaro (Redação Inquieta) escreveu:
"Com alguma razão, os deuses imaginaram: não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança".
A pedra que eternamente volta à base da montanha são as peças da linha de produção da fábrica... e o indivíduo que eternamente repete os mesmo gestos na linha de produção é o Sísifo moderno.
Tudo isso por quê?
Por que tentamos enganar a morte, trabalhando para sobreviver? Esse é o nosso castigo?
-----------
A próxima vez que você for comer um chocolate, pense: Sísifo.
Existem vários empregos que me angustiam. Mas trabalhar em uma fábrica é algo simbólico. Não por causa do Charles Chaplin, apertando parafusos no Tempos Modernos.
Mas porque ser um operário de uma linha de produção é um dos símbolos mais perfeitos da despersonalização do indivíduo.
É a metáfora ideal sobre ser uma engrenagem em uma máquina.
A peça humana, embora essencial para o resultado final, é substituível; é desinteressada (não há interesse pessoal envolvido na sua atividade); é automatizada (seus movimentos são sempre os mesmos); e é desinvestida de qualquer senso crítico sobre seus atos (ou alguém imagina que o operário pergunte a si mesmo: "o mundo precisa tanto assim de um celular com televisão, a ponto de eu ter de trabalhar doze horas por dia para montá-lo?").
Não quero propor nenhuma discussão sobre as estruturas da sociedade, sobre o capitalismo ou sobre alternativas a ele. Essa conversa, aliás, por demais me aborrece, uma vez que 90% das pessoas que eu conhecço tem uma visão maniqueísta sobre o assunto. Só sabem dizer que o capitalismo é o MAL e o comunismo é o BEM, ou vice-versa.
Mas a questão da despersonalização não sai da minha cabeça...
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...Sísifo enganou e aprisionou a Morte. Com isso, ninguém mais morreu.
Plutão, deus do inferno, indignou-se com Sísifo, pois, sem a Morte trabalhando, o inferno estava sem novos hóspedes. Para resolver a situação, Plutão pediu ajuda a Marte, deus da guerra, e ambos libertaram a Morte.
Como lição pelo desaforo causado aos deuses, foi imposta uma pena a Sísifo: por toda eternidade, ele teve de rolar uma imensa rocha até o cume de uma montanha. E, sempre que chegava ao topo, a pedra rolava novamente para a base da montanha, obrigando a Sísífo repetir eternamente aquela tarefa.
A respeito disso, Gustavo Bernaro (Redação Inquieta) escreveu:
"Com alguma razão, os deuses imaginaram: não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança".
A pedra que eternamente volta à base da montanha são as peças da linha de produção da fábrica... e o indivíduo que eternamente repete os mesmo gestos na linha de produção é o Sísifo moderno.
Tudo isso por quê?
Por que tentamos enganar a morte, trabalhando para sobreviver? Esse é o nosso castigo?
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A próxima vez que você for comer um chocolate, pense: Sísifo.
segunda-feira, 16 de março de 2009
Sexo, ciúme e amor sem fim...
(...mais um post da série: "eu vi um filme...")
Assisti recentemente a dois filmes adaptados de livros: “Fatal” e “Amor nos Tempos do Cólera”.
Um fala sobre sexo e ciúme obsessivo, o outro, sobre amor sem fim. Nem precisaria dizer de qual eu gostei mais, mas vou dizer assim mesmo.
"Amor nos tempos..." é fraco. Não sei se Gabriel Garcia Márquez ficou satisfeito, mas eu não fiquei. O elenco é de interpretações pobres (salvo Javier Bardem) e o enredo se distancia do que o livro oferece de melhor: a crueldade cega e inata do amor.
Não tenho o meu exemplar aqui (se você, leitor, o tem emprestado, favor devolver...). Se o tivesse comigo, transcreveria exatamente as palavras com as quais a mãe do protagonista o adverte sobre as agruras da desilusão anunciada: “o reino do amor é um reino cruel e impiedoso, e nele só ingressam os homens de caráter resoluto, que infundem nas mulheres a segurança que elas precisam para viver...”
Essa não é a literalidade da citação, mas contém seu sentido mais relevante (se não me enganam os 15 anos que me separam da última leitura do livro).
Não adentremos no assunto infinito e sem consenso das expectativas femininas. O importante é que o protagonista do livro não tinha o "espírito resoluto" necessário para ingressar no reino do amor. E o resultado não foi outro: rejeição.
A rejeição, no caso, jamais sarou... O jovem (e aí vem o caráter de realismo-fantástico da história de Márquez) esperou 53 anos para ter em seus braços a mulher amada.
Ocorre que o filme se detém demais nessa longa espera do protagonista, e, assim, deixa de lado o mais impactante e verdadeiro na história do "Amor nos Tempos...": a crueldade com que o desejo de ser amado é destroçado pela não correspondência de amor.
A mulher pela qual o protagonista se apaixona à primeira vista corresponde-lhe, inicialmente, a afeição. Durante um ano inteiro, ela lhe envia, de outra cidade (para onde havia sido levada pelo pai, para esquecer o pretendente), cartas de amor e de promessas de casamento.
Um dia, no entanto, na primeira oportunidade em que se reencontram, ela simplesmente se dá conta de que não era aquilo que queria. E diz na lata do jovem apaixonado:
_ Isso (teu amor) é uma ilusão; nada existe entre nós, nem pode existir: percebi que não te amo.
A crueldade dessa rejeição – sorry, lovers– é o ponto mais forte do livro.
O amor pode ser facilmente alimentado, iludido, e, depois, dizimado. Exatamente como a cólera dizimava facilmente as vidas daqueles tempos...
Por que o ser humano é assim? Por que não se consegue amar a quem nos ama?
Essas questões angustiantes emergem naturalmente da cena da rejeição do jovem apaixonado. E tem espaço para crescer e serem pensadas no livro. Porém, esse efeito de fazer refletir é justamente o que falta no filme, já que nele tudo se amarra perfeitamente, especialmente a rejeição inicial que se amarra com o ato final de conquista da mulher amada.
Portanto, a questão não é de má adaptação do livro; o problema mesmo é falta de apreensão do sentimento que permeia a obra escrita.
Sentimento que, no caso de o “Amor nos Tempos do Cólera”, é de impotência frente à violenta e cega natureza do amor – que não escolhe destinatário, que não assegura felicidade, e, sobretudo, que não privilegia aqueles que acham que o merecem.
Bem diferente é a situação de “Fatal”, filme em que Isabel Coixet soube captar – em algum grau – o sentimento do ótimo “Animal Agonizante”, de Philip Roth.
Isso pode parecer pouco a quem não leu o livro, mas asseguro que a menor aproximação da obra de Philip Roth já é grande feito...
p.s. queria escrever sobre O Animal Agonizante, mas escrevi sobre o outro livro. De toda forma “O Animal...” merece um post só pra ele. Qualquer livro do Roth o merece. Quem sabe outra hora....
Assisti recentemente a dois filmes adaptados de livros: “Fatal” e “Amor nos Tempos do Cólera”.
Um fala sobre sexo e ciúme obsessivo, o outro, sobre amor sem fim. Nem precisaria dizer de qual eu gostei mais, mas vou dizer assim mesmo.
"Amor nos tempos..." é fraco. Não sei se Gabriel Garcia Márquez ficou satisfeito, mas eu não fiquei. O elenco é de interpretações pobres (salvo Javier Bardem) e o enredo se distancia do que o livro oferece de melhor: a crueldade cega e inata do amor.
Não tenho o meu exemplar aqui (se você, leitor, o tem emprestado, favor devolver...). Se o tivesse comigo, transcreveria exatamente as palavras com as quais a mãe do protagonista o adverte sobre as agruras da desilusão anunciada: “o reino do amor é um reino cruel e impiedoso, e nele só ingressam os homens de caráter resoluto, que infundem nas mulheres a segurança que elas precisam para viver...”
Essa não é a literalidade da citação, mas contém seu sentido mais relevante (se não me enganam os 15 anos que me separam da última leitura do livro).
Não adentremos no assunto infinito e sem consenso das expectativas femininas. O importante é que o protagonista do livro não tinha o "espírito resoluto" necessário para ingressar no reino do amor. E o resultado não foi outro: rejeição.
A rejeição, no caso, jamais sarou... O jovem (e aí vem o caráter de realismo-fantástico da história de Márquez) esperou 53 anos para ter em seus braços a mulher amada.
Ocorre que o filme se detém demais nessa longa espera do protagonista, e, assim, deixa de lado o mais impactante e verdadeiro na história do "Amor nos Tempos...": a crueldade com que o desejo de ser amado é destroçado pela não correspondência de amor.
A mulher pela qual o protagonista se apaixona à primeira vista corresponde-lhe, inicialmente, a afeição. Durante um ano inteiro, ela lhe envia, de outra cidade (para onde havia sido levada pelo pai, para esquecer o pretendente), cartas de amor e de promessas de casamento.
Um dia, no entanto, na primeira oportunidade em que se reencontram, ela simplesmente se dá conta de que não era aquilo que queria. E diz na lata do jovem apaixonado:
_ Isso (teu amor) é uma ilusão; nada existe entre nós, nem pode existir: percebi que não te amo.
A crueldade dessa rejeição – sorry, lovers– é o ponto mais forte do livro.
O amor pode ser facilmente alimentado, iludido, e, depois, dizimado. Exatamente como a cólera dizimava facilmente as vidas daqueles tempos...
Por que o ser humano é assim? Por que não se consegue amar a quem nos ama?
Essas questões angustiantes emergem naturalmente da cena da rejeição do jovem apaixonado. E tem espaço para crescer e serem pensadas no livro. Porém, esse efeito de fazer refletir é justamente o que falta no filme, já que nele tudo se amarra perfeitamente, especialmente a rejeição inicial que se amarra com o ato final de conquista da mulher amada.
Portanto, a questão não é de má adaptação do livro; o problema mesmo é falta de apreensão do sentimento que permeia a obra escrita.
Sentimento que, no caso de o “Amor nos Tempos do Cólera”, é de impotência frente à violenta e cega natureza do amor – que não escolhe destinatário, que não assegura felicidade, e, sobretudo, que não privilegia aqueles que acham que o merecem.
Bem diferente é a situação de “Fatal”, filme em que Isabel Coixet soube captar – em algum grau – o sentimento do ótimo “Animal Agonizante”, de Philip Roth.
Isso pode parecer pouco a quem não leu o livro, mas asseguro que a menor aproximação da obra de Philip Roth já é grande feito...
p.s. queria escrever sobre O Animal Agonizante, mas escrevi sobre o outro livro. De toda forma “O Animal...” merece um post só pra ele. Qualquer livro do Roth o merece. Quem sabe outra hora....
domingo, 8 de março de 2009
O sono da razão...
Acabei de ver “As sombras de Goya” (Goya’s ghosts). O filme vale pela personagem de Goya (em tudo que mostra o quão grande foi o artista) e também pelo relato (mais um) das crueldades pretéritas da Igreja Católica.
A princípio, aborrece o fato de uma história tão espanhola ser contada em inglês, mas no decorrer da película esse revés se dilui (e é compensado) pela atuação de Javier Bardem (esse, sim, devidamente espanhol). Se fosse resenhar, daria especial destaque à trilha sonora, que se funde harmoniosamente ao clima sombrio das obras do pintor.
A princípio, aborrece o fato de uma história tão espanhola ser contada em inglês, mas no decorrer da película esse revés se dilui (e é compensado) pela atuação de Javier Bardem (esse, sim, devidamente espanhol). Se fosse resenhar, daria especial destaque à trilha sonora, que se funde harmoniosamente ao clima sombrio das obras do pintor.
Mas não desejo resenhar. O desejo é de dizer o quanto tudo vem à propósito, quando estamos dispostos a fazer associações...
Posto de forma direta: quando algo nos perturba, todo o resto parece relacionar-se com o objeto da nossa perturbação.
Explico.
Não vou dizer que fiquei chocadíssimo com a notícia da menina pernambucana estuprada e grávida de gêmeos aos nove anos. A realidade de um mundo absurdo derruiu boa parte do meu sentido de espanto; só consigo agora lamentar.
Mas se já não logro alcançar o sentimento de surpresa em face de situações tão perversas, por outro lado não perdi o sentimento de raiva contra aqueles que conseguem, com sua insensibilidade brutal, piorar o que de per si já é horrível...
Falo do arcebispo de Olinda e de Recife, dom José Cardoso Sobrinho. Falo da igreja católica (mas, sinceramente, poderia ser qualquer outra igreja).
O sr. arcebispo, ao declarar, em reportagem amplamente veiculada na mídia, que a “lei de deus” (deus de quem?) exigia a continuidade da gravidez da menor, simplesmente deu a entender: dane-se a vontade da menina e de sua família!; danem-se a saúde e a psique da menina!; danem-se todos interesses pessoais envolvidos!; dura lex, sede lex!
Não bastasse isso, o “mandatário de deus” excomungou todas as pessoas que intervieram na interrupção da gravidez...
Ora, com atos como esse, a igreja católica bem fez jus à sua história: a história de uma instituição outrora criminosa.
Sim, criminosa! Pois as práticas do Santo Ofício e os ignóbeis processos inquisitoriais medievais não encontram melhor definição: atos criminosos.
Entendam que não estou a criticar o ato de fé, a crença pessoal ou qualquer outro sentimento alimentado por quem quer que seja.
Mas a questão é que em face dos sofrimentos por que certamente passou aquela criança pernambucana, o senso de humanidade e de razoabilidade impunham que a Igreja ou quem quer que fosse não piorasse a situação com críticas fundadas em crenças absolutamente pessoais (caso da fé em deus).
(Aliás, a mídia que me desculpe, mas seria muito melhor para o mundo se jamais se houvesse ouvido falar em Dom José Cardoso Sobrinho, se jamais se desse um segundo de atenção às suas declarações embrutecidas e estreitas, pois o revolvimento e o debate constante do caso contrariam a exigência (lógica) de resguardo da intimidade da menor abusada...)
Enfim, não vou me alongar... pois, como disse, a celeuma não merece ser prolongada.
Apenas vou atar as duas pontas do texto, sugerindo a todos uma experiência reflexiva: vejam o filme que mencionei no começo, “As Sombras de Goya”, e vejam logo em seguida (em qualquer site na net) a entrevista com as declarações do Arcebispo Dom José Cardoso Sobrinho.
Depois, me digam: o que mudou desde a idade média? (acho que não foi muito, certo? mas ao menos o arcebispo não conseguirá incendiar a criança violentada...)
p.s.: certa vez, em uma exposição das obras de Goya (muito longe da Ilha...), li uma frase que não pude esquecer, e que bem resumiria nossos tempos:
“O sono da razão produz monstros”.
...e nossa razão parece adormecida para sempre...
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sábado, 28 de fevereiro de 2009
"Ars Gratia Artis"
A despeito da complexidade do ser humano, certas situações de vida são tão universais que conseguem ser resumidas em uma canção...
"I'm so tired, I haven't slept a wink
I'm so tired, my mind is on the blink
I wonder should I get up and fix myself a drink no, no, no...
... you know I'd give you everything I've got for a little peace of mind..." (Lennon/McCartney).
Da mesma forma, embora se habite um universo de infinitas possibilidades (sedutor, não?),
o instante presente é sempre o resultado de uma equação inevitável: circunstâncias+você.
Estou apenas plagiando a filosofia de Ortega y Gasset: "um homem é um homem e suas circunstâncias..."
Vejo isso claramente noutra canção:
"Sometimes a man gets carried away, when he feels like he should be having his fun
And much too blind to see the damage he's done
Sometimes a man must awake to find that really, he has no-one" (Jeff Buckley).
Vai ver essas impressões são coisas de uma cabeça de Jovem Werther; uma visão idealizada de mundo talvez.
Ou vai ver "essa lua esse conhaque botam a gente comovido como o diabo", como explicaria com maior sinceridade Carlos Drummond... (poema das sete faces).
"Arte pela arte", ou um significado transcendental em todas as expressões de nossa condição humana.... Tudo é uma questão de ponto de vista (pra quem tem!), e tudo pode se resumir a uma idiossincrasia (pra quem acreditar nisso).
Mas, na dúvida, vou pedir piedade, pois há um incêndio sob a chuva rala...
... somos iguais em desgraça, vou cantar o blues da piedade.
"I'm so tired, I haven't slept a wink
I'm so tired, my mind is on the blink
I wonder should I get up and fix myself a drink no, no, no...
... you know I'd give you everything I've got for a little peace of mind..." (Lennon/McCartney).
Da mesma forma, embora se habite um universo de infinitas possibilidades (sedutor, não?),
o instante presente é sempre o resultado de uma equação inevitável: circunstâncias+você.
Estou apenas plagiando a filosofia de Ortega y Gasset: "um homem é um homem e suas circunstâncias..."
Vejo isso claramente noutra canção:
"Sometimes a man gets carried away, when he feels like he should be having his fun
And much too blind to see the damage he's done
Sometimes a man must awake to find that really, he has no-one" (Jeff Buckley).
Vai ver essas impressões são coisas de uma cabeça de Jovem Werther; uma visão idealizada de mundo talvez.
Ou vai ver "essa lua esse conhaque botam a gente comovido como o diabo", como explicaria com maior sinceridade Carlos Drummond... (poema das sete faces).
"Arte pela arte", ou um significado transcendental em todas as expressões de nossa condição humana.... Tudo é uma questão de ponto de vista (pra quem tem!), e tudo pode se resumir a uma idiossincrasia (pra quem acreditar nisso).
Mas, na dúvida, vou pedir piedade, pois há um incêndio sob a chuva rala...
... somos iguais em desgraça, vou cantar o blues da piedade.
segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009
Não-julgamentos.
Fora da Ilha metafórica, a realidade impressiona. Retomando contato com o que acontece no mundo, percebo (como tantas vezes percebi, percebi e esqueci) que as coisa não vão bem...
Mas como eu cansasse de juízo de valores, cansasse de escrever sobre minha percepção estreita e antiquada do mundo, cansasse dos meus preconceitos e do fardo ideológico que carrego, resolvi escrever esse post sobre não-julgamentos
Para não julgar, trago três notícias que me atingiram nesse passeio pelo mundo externo.
Notícia 1.
Yeda Crusius mandou uma carta ao Paulo Sant'ana. Disse-lhe que era um desabafo; disse-lhe que era pessoal (que ia manuscrita, como nos velhos tempos); e explicou-lhe:
"Esta é da decisão de escrever, é num lindo domingo, uma mensagem pessoal – entenda, não deve ser pública."
O que o destinatário fez com a missiva - particular - que recebera???
Publicou-a.
Notícia 2.
Jade Goody, uma jovem inglesa cujo câncer está em fase terminal, vendeu o direito de transmissão exclusiva de seu casamento .
A doença disseminada pelo corpo de Jade e a irreversibilidade de seu quadro clínico anunciam a iminência da morte. A transmissão do casamento na mídia, ao preço de 750 mil libras, bem como o acompanhamento dos últimos dias de Jade vêm causando comiseração pública na sociedade inglesa.
O site do jornal “O Estadão” pintou as cores da cerimônia:
“A noiva estava careca por causa da quimioterapia, e carregava uma bolsa de analgésicos 'escondida' pelo design do vestido, que foi adaptado para tal; o noivo está em liberdade condicional depois de agredir um adolescente com um taco de golfe.”
Comentários há de que Jade deseja que sua morte seja transmitida na televisão, como em um reality show...
Notícia 3.
Uma senhora morava com um chimpanzé de 90 quilos nos Estados Unidos. Semana passado, o primata (o de 90 quilos) tentou matar uma amiga de sua dona. A vítima do ataque quase morreu.
Segundo a Agência Reuters,
"citando vizinhos, a mídia local disse que o chimpanzé em geral se comportava bem e participava de atividades humanas como navegar na Internet e assistir a jogos de beisebol na TV. Ele se sentava à mesa, comia carnes caras e bebia vinho, escovando os dentes após as refeições."
O chimpanzé que comia carnes caras, bebia vinho e escovava os dentes foi morto pela polícia local - não porque violasse alguma regra de etiqueta à mesa, mas por atacar um indivíduo da espécie mais evoluída...
------------
Não-julgamentos.
Não vou julgar se houve violação à intimidade da autora da missiva. Se o comentarista, imbuído pelo desejo de causar estardalhaço, magoou os sentimentos de quem se confessava sua amiga. O que é intimidade, o que vale a confiança? Um não-julgamento não permite tais investigações.
Não vou especular se Jade Goody é mais uma faceta de uma sociedade sádica, que, por se comprazer com o sofrimento alheio, anseia por presenciar os últimos momentos de uma mulher em sofrimento. Não há conclusão possível, pois isso exigiria um julgamento acerca dos interesses e valores contrapostos no caso.
Por fim, não vou julgar se a senhora americana que morava com um chimpanzé de 90 quilos estava certa ou errada. Deveria ela ter privilegiado o relacionamento com um ser humano? Deveria ela ter adotado uma criança senegalesa, ao invés de um chimpanzé? Haveria falta de bom senso em domesticar um animal de 90 quilos? Pode ser considerado ofensivo (a quem não tem o comer, por exemplo) o fato de um chimpanzé ser tratado à boa mesa?
Julgamentos que não serão feitos.
Cada um reflita se quiser. E se puder.
Mas como eu cansasse de juízo de valores, cansasse de escrever sobre minha percepção estreita e antiquada do mundo, cansasse dos meus preconceitos e do fardo ideológico que carrego, resolvi escrever esse post sobre não-julgamentos
Para não julgar, trago três notícias que me atingiram nesse passeio pelo mundo externo.
Notícia 1.
Yeda Crusius mandou uma carta ao Paulo Sant'ana. Disse-lhe que era um desabafo; disse-lhe que era pessoal (que ia manuscrita, como nos velhos tempos); e explicou-lhe:
"Esta é da decisão de escrever, é num lindo domingo, uma mensagem pessoal – entenda, não deve ser pública."
O que o destinatário fez com a missiva - particular - que recebera???
Publicou-a.
Notícia 2.
Jade Goody, uma jovem inglesa cujo câncer está em fase terminal, vendeu o direito de transmissão exclusiva de seu casamento .
A doença disseminada pelo corpo de Jade e a irreversibilidade de seu quadro clínico anunciam a iminência da morte. A transmissão do casamento na mídia, ao preço de 750 mil libras, bem como o acompanhamento dos últimos dias de Jade vêm causando comiseração pública na sociedade inglesa.
O site do jornal “O Estadão” pintou as cores da cerimônia:
“A noiva estava careca por causa da quimioterapia, e carregava uma bolsa de analgésicos 'escondida' pelo design do vestido, que foi adaptado para tal; o noivo está em liberdade condicional depois de agredir um adolescente com um taco de golfe.”
Comentários há de que Jade deseja que sua morte seja transmitida na televisão, como em um reality show...
Notícia 3.
Uma senhora morava com um chimpanzé de 90 quilos nos Estados Unidos. Semana passado, o primata (o de 90 quilos) tentou matar uma amiga de sua dona. A vítima do ataque quase morreu.
Segundo a Agência Reuters,
"citando vizinhos, a mídia local disse que o chimpanzé em geral se comportava bem e participava de atividades humanas como navegar na Internet e assistir a jogos de beisebol na TV. Ele se sentava à mesa, comia carnes caras e bebia vinho, escovando os dentes após as refeições."
O chimpanzé que comia carnes caras, bebia vinho e escovava os dentes foi morto pela polícia local - não porque violasse alguma regra de etiqueta à mesa, mas por atacar um indivíduo da espécie mais evoluída...
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Não-julgamentos.
Não vou julgar se houve violação à intimidade da autora da missiva. Se o comentarista, imbuído pelo desejo de causar estardalhaço, magoou os sentimentos de quem se confessava sua amiga. O que é intimidade, o que vale a confiança? Um não-julgamento não permite tais investigações.
Não vou especular se Jade Goody é mais uma faceta de uma sociedade sádica, que, por se comprazer com o sofrimento alheio, anseia por presenciar os últimos momentos de uma mulher em sofrimento. Não há conclusão possível, pois isso exigiria um julgamento acerca dos interesses e valores contrapostos no caso.
Por fim, não vou julgar se a senhora americana que morava com um chimpanzé de 90 quilos estava certa ou errada. Deveria ela ter privilegiado o relacionamento com um ser humano? Deveria ela ter adotado uma criança senegalesa, ao invés de um chimpanzé? Haveria falta de bom senso em domesticar um animal de 90 quilos? Pode ser considerado ofensivo (a quem não tem o comer, por exemplo) o fato de um chimpanzé ser tratado à boa mesa?
Julgamentos que não serão feitos.
Cada um reflita se quiser. E se puder.
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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009
enfim...
Não sou de postar relatos da minha vida. Não gosto do tom da narração, quanto mais de eventos cotidianos. Mas, para explicar o último post, sinto-me obrigado a fazer um breve relato.
Começa com a saída da Ilha (metafórica, já expliquei), na companhia de amigos e aos cuidados de um motorista com assumida tendência suícida (jamais vá com quem deseja inconscientemente encontrar aquele por quem os sinos dobram...). Mas enfim, a piorar a situação já por si ruim, veio o temporal... nuvens pesadíssimas e negras, rumo as quais nos dirigimos sem ter noção exata do que fazíamos (me lembrei depois de"A Linha de Sombra", do Joseph Conrad, pelo mistério em que se embrenharam os marinheiros...).
Resumindo a opera (pois não posso me estender: a bateria do lap está acabando; estou em uma rodoviária à espera de um bus): no meio do fim dos tempos, com granizo, vento e 0% de visibilidade, não paramos, não houve nada... só restou a experiência ruim de não ter o comando do barco... de depender de fatores externos e de outras pessoas...
...mas a vida não é assim mesmo, afinal?
Começa com a saída da Ilha (metafórica, já expliquei), na companhia de amigos e aos cuidados de um motorista com assumida tendência suícida (jamais vá com quem deseja inconscientemente encontrar aquele por quem os sinos dobram...). Mas enfim, a piorar a situação já por si ruim, veio o temporal... nuvens pesadíssimas e negras, rumo as quais nos dirigimos sem ter noção exata do que fazíamos (me lembrei depois de"A Linha de Sombra", do Joseph Conrad, pelo mistério em que se embrenharam os marinheiros...).
Resumindo a opera (pois não posso me estender: a bateria do lap está acabando; estou em uma rodoviária à espera de um bus): no meio do fim dos tempos, com granizo, vento e 0% de visibilidade, não paramos, não houve nada... só restou a experiência ruim de não ter o comando do barco... de depender de fatores externos e de outras pessoas...
...mas a vida não é assim mesmo, afinal?
fim dos tempos
estamos no meio de um temporal... já pedi para o motora parar... nao dá pra ver nada... nao sei como tenho sinal ainda... medo........ voltaremos.... espero.......
segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009
Since I've Been Loving You
Since i've been loving you é um blues do álbum Led Zeppelin III - um disco primoroso, com violões em afinações inusitadas (friends), guitarras sobrepostas (immigrant song) e melodias cinzentas (tangerine).
Since i've been loving you é melancolia musicada.
Uma música destilada por um século, em um barril feito com o barro do Mississipi, forjado na fog londrina.
Alguém disse que é impossível escutar Grace, do Jeff Buckley, e continuar sendo a mesma pessoa...
Pois Since não exerce esse efeito de mudança em mim, mas o efeito da emersão de um pedaço do passado no momento presente.
E cada vez que a ouço, são dez, quinze anos que desaparecem, e volta o quarto da minha adolescência, a janela da minha adolescência, volta o inverno, a solidão...
Since é a confirmação da teoria da relatividade na minha vida: um túnel ligando o passado e o presente.
Duas frações de tempo flutuando na mesma névoa, ao mesmo som: pura melancolia musicada.
Since i've been loving you é melancolia musicada.
Uma música destilada por um século, em um barril feito com o barro do Mississipi, forjado na fog londrina.
Alguém disse que é impossível escutar Grace, do Jeff Buckley, e continuar sendo a mesma pessoa...
Pois Since não exerce esse efeito de mudança em mim, mas o efeito da emersão de um pedaço do passado no momento presente.
E cada vez que a ouço, são dez, quinze anos que desaparecem, e volta o quarto da minha adolescência, a janela da minha adolescência, volta o inverno, a solidão...
Since é a confirmação da teoria da relatividade na minha vida: um túnel ligando o passado e o presente.
Duas frações de tempo flutuando na mesma névoa, ao mesmo som: pura melancolia musicada.
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sábado, 14 de fevereiro de 2009
Provocações
Dia desses, recorrendo a um dos poucos canais de televisão cujos sinais são transmitidos aqui na Ilha (à exceção daqueles tantos que prometem "a-salvação-na-graça-do-senhor-jesus-aleluia-meus-irmãos" e o escambau...), caí no programa PROVOCAÇÕES (http://www.tvcultura.com.br/provocacoes/abujamra.htm).
Havia uma entrevista com um sujeito até então complemente desconhecido pra mim... Zéu Britto (o desconhecia mais pela minha ignorância do que pela falta de fama dele).
Se eu houvesse apenas escutado uma de suas músicas, talvez o achasse apenas ridículo (muitos devem conhecer o hit "raspadinha", que começa com "te empresto meu prestobarba baby..." e vai por aí afora - v. http://www.zeubritto.blogger.com.br)./
No entanto, certas provocações que ele fez - devidamente filtradas pela noção de que muito é marketing e só o resíduo parece ser sincero - não me permitem chegar a essa conclusão apressada.
Não vou comentar sobre tudo que ouvi, pois não valeria o tempo (o tempo de vocês, não o meu, que é infinito pra escrever....). Mas vou resumir tudo o que ele disse (e, por que não, o que ele representa) nas palavras finais que o Abujamra lhe permitiu dizer.
"...se você tem algum preconceito, se enterre, não viva. Porque a vida está cheia de pessoas e cada uma delas tem um jeito...".
Talvez não tenham sido esses os termos, mas foi isso que eu entendi e guardei. E, sobre isso, acho desnecessário tecer maiores comentários. Na verdade, faço apenas uma singela reflexão íntima: tudo que nos afasta do conhecimento empírico da vida não nos engrandece, apenas nos encerra num mundo hipotético (criado para nos proteger da dor da frustração).
Desculpe se não estou sendo claro - é isso que acontece quando a idéia vai surgindo enquanto escrevemos! - mas o sentido do parágrafo acima pode ser esclarecido assim: o mundo é rico em preconceitos, pois os preconceitos nos protegem de vivermos a dor do mundo real (frustrações, mágoas, angústia), e isso é uma consequência natural de uma sociedade que almeja o prazer absoluto, o sucesso absoluto e que - por via de consequência - marginaliza e retira a importância de tudo que está aquém desses parâmetros absurdos e irreais (que só convêm a quem?).
Deve ter ficado mais confuso ainda, não? Não importa. Estou falando sobre tentativa e erro. Tentando reviver a importância do erro. Logo, esse post não seria um reflexo verdadeiro desse meu momento - "eu que já não quero mais ser um vencedor..." - se não fosse confuso, se não "houvessem" erros...
Nem sei mais o que queria dizer quando comecei a escrever...
...e isso é ótimo.
Poema
A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias ( do mundo e as nossas ).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco pra elogios.
(Manoel de Barros).
Havia uma entrevista com um sujeito até então complemente desconhecido pra mim... Zéu Britto (o desconhecia mais pela minha ignorância do que pela falta de fama dele).
Se eu houvesse apenas escutado uma de suas músicas, talvez o achasse apenas ridículo (muitos devem conhecer o hit "raspadinha", que começa com "te empresto meu prestobarba baby..." e vai por aí afora - v. http://www.zeubritto.blogger.com.br)./
No entanto, certas provocações que ele fez - devidamente filtradas pela noção de que muito é marketing e só o resíduo parece ser sincero - não me permitem chegar a essa conclusão apressada.
Não vou comentar sobre tudo que ouvi, pois não valeria o tempo (o tempo de vocês, não o meu, que é infinito pra escrever....). Mas vou resumir tudo o que ele disse (e, por que não, o que ele representa) nas palavras finais que o Abujamra lhe permitiu dizer.
"...se você tem algum preconceito, se enterre, não viva. Porque a vida está cheia de pessoas e cada uma delas tem um jeito...".
Talvez não tenham sido esses os termos, mas foi isso que eu entendi e guardei. E, sobre isso, acho desnecessário tecer maiores comentários. Na verdade, faço apenas uma singela reflexão íntima: tudo que nos afasta do conhecimento empírico da vida não nos engrandece, apenas nos encerra num mundo hipotético (criado para nos proteger da dor da frustração).
Desculpe se não estou sendo claro - é isso que acontece quando a idéia vai surgindo enquanto escrevemos! - mas o sentido do parágrafo acima pode ser esclarecido assim: o mundo é rico em preconceitos, pois os preconceitos nos protegem de vivermos a dor do mundo real (frustrações, mágoas, angústia), e isso é uma consequência natural de uma sociedade que almeja o prazer absoluto, o sucesso absoluto e que - por via de consequência - marginaliza e retira a importância de tudo que está aquém desses parâmetros absurdos e irreais (que só convêm a quem?).
Deve ter ficado mais confuso ainda, não? Não importa. Estou falando sobre tentativa e erro. Tentando reviver a importância do erro. Logo, esse post não seria um reflexo verdadeiro desse meu momento - "eu que já não quero mais ser um vencedor..." - se não fosse confuso, se não "houvessem" erros...
Nem sei mais o que queria dizer quando comecei a escrever...
...e isso é ótimo.
Poema
A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias ( do mundo e as nossas ).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco pra elogios.
(Manoel de Barros).
segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009
À minha irmã
Reflexão filosófica nº.... (alguém vê pra mim em qual número paramos...):
Por que magoamos as pessoas de que gostamos?
Um fato ocorrido há minutos me levou a meditar sobre o que nos leva a magoar as outras pessoas (essa pergunta poderia ser uma espécie do gênero “por que fizemos toda sorte de bobagem na nossa vida?”).
Bem, eu tenho uma resposta-teoria.
Em primeiro lugar, devo esclarecer que não tenho qualquer compromisso com a verdade. Aliás, nem acredito nela. Acredito, isso sim, em Manoel de Barros, que disse:
“há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira”.
Feito esse alerta, desde já dou resposta à pergunta inicial: o desejo.
O nosso desejo é o culpado por tudo de errado que fizemos às pessoas de que gostamos.
Explico. Se atendemos ao apelo de nosso desejo sem ponderar os sentimentos alheios, não há dúvida: magoamos alguém.
Por outro lado, se deixamos de lado o nosso desejo em algum contato afetivo (buscando satisfazer a quem gostamos), logo nos sentimos frustrados, e disso decorre uma série de consequências ruins que invariavelmente desembocam em um ato mais ríspido, em uma ironia menos sutil, um esquecimento relevante e... pronto: magoamos alguém.
Mas, e eis a nota menos óbvia na composição dessa reflexão: pior do que atender ou recalcar um desejo, é nem sequer o conhecer.
Não conhecer o que desejamos é o caminho mais curto para um desentendimento, é uma forma rematada de ferrarmos com tudo.
Porque – me desculpem os entendidos no assunto, por tatear entre conceitos que não domino – os desejos jamais desaparecem; só mudam as formas com que damos vazão a eles.
Assim, desejar e não conhecer o desejo, é como caminhar sem saber pra onde se vai: geralmente redunda em perda de tempo e frustração.
Mais do que isso, o desconhecimento dos nossos anseios nos sujeita a investir imensas quantidades de tempo e energia em simulacros de satisfação.
E a vida é cheia de atos que parecem saciar uma necessidade, mas se dirigem a outros fins... comer demais, beber demais (não é a fome nem a sede que se sacia....).
Até escrever um blog pode ser um meio de se enganar (mea culpa).
Porém, se conhecemos o que queremos e empregamos os meios adequados, o tempo não é perdido.
Por exemplo, se eu não soubesse qual desejo me levou a escrever essas palavras, talvez eu me arrependesse pelos 50 minutos passados à frente do computador (afinal, há muito a fazer....e tão pouco tempo....).
Mas eu sei o que me levou a escrever esse texto. Por isso o cansaço dos meus olhos não será em vão:
desculpa.
Por que magoamos as pessoas de que gostamos?
Um fato ocorrido há minutos me levou a meditar sobre o que nos leva a magoar as outras pessoas (essa pergunta poderia ser uma espécie do gênero “por que fizemos toda sorte de bobagem na nossa vida?”).
Bem, eu tenho uma resposta-teoria.
Em primeiro lugar, devo esclarecer que não tenho qualquer compromisso com a verdade. Aliás, nem acredito nela. Acredito, isso sim, em Manoel de Barros, que disse:
“há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira”.
Feito esse alerta, desde já dou resposta à pergunta inicial: o desejo.
O nosso desejo é o culpado por tudo de errado que fizemos às pessoas de que gostamos.
Explico. Se atendemos ao apelo de nosso desejo sem ponderar os sentimentos alheios, não há dúvida: magoamos alguém.
Por outro lado, se deixamos de lado o nosso desejo em algum contato afetivo (buscando satisfazer a quem gostamos), logo nos sentimos frustrados, e disso decorre uma série de consequências ruins que invariavelmente desembocam em um ato mais ríspido, em uma ironia menos sutil, um esquecimento relevante e... pronto: magoamos alguém.
Mas, e eis a nota menos óbvia na composição dessa reflexão: pior do que atender ou recalcar um desejo, é nem sequer o conhecer.
Não conhecer o que desejamos é o caminho mais curto para um desentendimento, é uma forma rematada de ferrarmos com tudo.
Porque – me desculpem os entendidos no assunto, por tatear entre conceitos que não domino – os desejos jamais desaparecem; só mudam as formas com que damos vazão a eles.
Assim, desejar e não conhecer o desejo, é como caminhar sem saber pra onde se vai: geralmente redunda em perda de tempo e frustração.
Mais do que isso, o desconhecimento dos nossos anseios nos sujeita a investir imensas quantidades de tempo e energia em simulacros de satisfação.
E a vida é cheia de atos que parecem saciar uma necessidade, mas se dirigem a outros fins... comer demais, beber demais (não é a fome nem a sede que se sacia....).
Até escrever um blog pode ser um meio de se enganar (mea culpa).
Porém, se conhecemos o que queremos e empregamos os meios adequados, o tempo não é perdido.
Por exemplo, se eu não soubesse qual desejo me levou a escrever essas palavras, talvez eu me arrependesse pelos 50 minutos passados à frente do computador (afinal, há muito a fazer....e tão pouco tempo....).
Mas eu sei o que me levou a escrever esse texto. Por isso o cansaço dos meus olhos não será em vão:
desculpa.
Dylan, Morrison e eu
Eu sou muito influenciável. Muito impressionável. Suscetível demais a coisas interessantes. Sejam pessoas, filmes, músicas, ou, no caso, livros.
Quando me deparo com alguma dessas fontes irradiadoras de adoração ou culto, me sinto um barco à deriva, levado por uma força muito, muito, maior.
Estou falando do impacto que me causou, aliás, está me causando, ler o livro On The Road, do Jack Kerouac. Quem já leu o livro, deve estar pensando: é só mais um sofrendo o impacto.
Não duvido disso. Aliás, a repercussão da obra está muito bem registrada nas palavras do Eduardo Bueno - que introduziu e traduziu a edição de bolso da L&PM. Olhem só:
"...nenhum livro deste século terá deflagrado uma revolução comportamental maior que a obra de Kerouac".
E muito mais contundente é a seguinte afirmação:
"Bob Dylan fugiu de casa depois de ler On the road (...) Jim Morrison fundou The Doors".
Dylan e Morrison. Depois disso, nada mais é preciso dizer sobre o impacto cultural do livro.
Mas, voltando ao que dizia inicialmente, eu me senti extremamente suscetível ao enredo acelerado e viciante do livro: tive vontade de implementar uma revolução tal na minha vida que equivaleria a fugir de casa, mesmo já morando sozinho....
Tudo isso porque a vida me impressiona, porque as infinitas possibilidades não vividas parecem como mil vidas desperdiçadas, como mil caminhos não trilhados e mil pessoas jamais conhecidas...
E, tendo isso dentro de si, não há como não se sentir impulsionado rumo à vida, ao ler uma obra em que o desapego do protagonista pelos padrões da vida sensata e socialmente aceita é apenas a parte menos importante... A parte mais importante para Sal Paradise (o protagonista) não é a rejeição ao seu status social, nem mesmo é a rejeição a qualquer standart cultural ou à lema político-ideológico, mas é tão-só a busca pelo contato mais íntimo com a vida, pelo conhecimento mais empírico sobre o mundo.
Não sei a que o livro me levará, mas sua força impulsora já está em mim...
"How does it feel
To be on your own
With no direction home
Like a complete unknown?"
Quando me deparo com alguma dessas fontes irradiadoras de adoração ou culto, me sinto um barco à deriva, levado por uma força muito, muito, maior.
Estou falando do impacto que me causou, aliás, está me causando, ler o livro On The Road, do Jack Kerouac. Quem já leu o livro, deve estar pensando: é só mais um sofrendo o impacto.
Não duvido disso. Aliás, a repercussão da obra está muito bem registrada nas palavras do Eduardo Bueno - que introduziu e traduziu a edição de bolso da L&PM. Olhem só:
"...nenhum livro deste século terá deflagrado uma revolução comportamental maior que a obra de Kerouac".
E muito mais contundente é a seguinte afirmação:
"Bob Dylan fugiu de casa depois de ler On the road (...) Jim Morrison fundou The Doors".
Dylan e Morrison. Depois disso, nada mais é preciso dizer sobre o impacto cultural do livro.
Mas, voltando ao que dizia inicialmente, eu me senti extremamente suscetível ao enredo acelerado e viciante do livro: tive vontade de implementar uma revolução tal na minha vida que equivaleria a fugir de casa, mesmo já morando sozinho....
Tudo isso porque a vida me impressiona, porque as infinitas possibilidades não vividas parecem como mil vidas desperdiçadas, como mil caminhos não trilhados e mil pessoas jamais conhecidas...
E, tendo isso dentro de si, não há como não se sentir impulsionado rumo à vida, ao ler uma obra em que o desapego do protagonista pelos padrões da vida sensata e socialmente aceita é apenas a parte menos importante... A parte mais importante para Sal Paradise (o protagonista) não é a rejeição ao seu status social, nem mesmo é a rejeição a qualquer standart cultural ou à lema político-ideológico, mas é tão-só a busca pelo contato mais íntimo com a vida, pelo conhecimento mais empírico sobre o mundo.
Não sei a que o livro me levará, mas sua força impulsora já está em mim...
"How does it feel
To be on your own
With no direction home
Like a complete unknown?"
terça-feira, 3 de fevereiro de 2009
Al lado del camino
Todos os dias, faltando umas duas quadras para chegar em casa, eu inconscientemente tiro do bolso as chaves do apartamento, seguro-as na mão e vou caminhando assim até encontrar a porta esperada.
Faço isso ao meio-dia. Faço isso no final da tarde. E quase sinto o conforto dos meus chinelos com esse gesto de antecipar outro gesto: segurar as chaves antes de chegar, para abrir a porta de casa antes de estar lá.
Percebi nessa mania uma representação de algo maior na minha vida: meu anseio por estar sempre em um lugar em que ainda não cheguei.
Se parar pra pensar, sempre fiz isso. Quase sempre (raras foram as exceções) meu corpo estava em um lugar, mas minha mente já ia adiante.
Isso demonstra que sou uma pessoa insatisfeita? Ou simplesmente ambiciosa? Ou as duas coisas?
Não sei, mas por tentar sempre antecipar um momento desejado, pela força de querer alcançar um espaço à frente – me pergunto agora –, quanto coisa deixei passar pelo caminho?
Quanta coisa não vi à minha volta, simplesmente por não estar realmente presente, por não viver o momento vivido, mas tão-só o momento imaginado, anunciado...
Quando li a citação que abre “Ensaio sobre a cegueira”, me lembro bem, pensei como aquilo servia para mim –“Se podes olhar, vê. Se podes ver, enxerga”.
Dizem os psicanalistas que “o fim do desejo é a morte”; ou “estamos sempre desejando algo”.
Tudo bem. Até acredito que o constante desejar seja algo ínsito ao ser humano. Mas viver o presente apenas por conta do futuro desejado não me parece bom.
Não exageremos, meu caso não é tão ruim quanto parece.
Mas se pudesse, gostaria de ser como o personagem de “Al lado del camino”, que se contenta em abrir os olhos e estar vivo...
"Me gusta estar a un lado del camino fumando el humo mientras todo pasa
me gusta abrir los ojos y estar vivo
tener que vérmelas con la resaca
entonces navegar se hace preciso
en barcos que se estrellen en la nada
vivir atormentado de sentido
creo que ésta, sí, es la parte mas pesada " (Fito Paez).
Faço isso ao meio-dia. Faço isso no final da tarde. E quase sinto o conforto dos meus chinelos com esse gesto de antecipar outro gesto: segurar as chaves antes de chegar, para abrir a porta de casa antes de estar lá.
Percebi nessa mania uma representação de algo maior na minha vida: meu anseio por estar sempre em um lugar em que ainda não cheguei.
Se parar pra pensar, sempre fiz isso. Quase sempre (raras foram as exceções) meu corpo estava em um lugar, mas minha mente já ia adiante.
Isso demonstra que sou uma pessoa insatisfeita? Ou simplesmente ambiciosa? Ou as duas coisas?
Não sei, mas por tentar sempre antecipar um momento desejado, pela força de querer alcançar um espaço à frente – me pergunto agora –, quanto coisa deixei passar pelo caminho?
Quanta coisa não vi à minha volta, simplesmente por não estar realmente presente, por não viver o momento vivido, mas tão-só o momento imaginado, anunciado...
Quando li a citação que abre “Ensaio sobre a cegueira”, me lembro bem, pensei como aquilo servia para mim –“Se podes olhar, vê. Se podes ver, enxerga”.
Dizem os psicanalistas que “o fim do desejo é a morte”; ou “estamos sempre desejando algo”.
Tudo bem. Até acredito que o constante desejar seja algo ínsito ao ser humano. Mas viver o presente apenas por conta do futuro desejado não me parece bom.
Não exageremos, meu caso não é tão ruim quanto parece.
Mas se pudesse, gostaria de ser como o personagem de “Al lado del camino”, que se contenta em abrir os olhos e estar vivo...
"Me gusta estar a un lado del camino fumando el humo mientras todo pasa
me gusta abrir los ojos y estar vivo
tener que vérmelas con la resaca
entonces navegar se hace preciso
en barcos que se estrellen en la nada
vivir atormentado de sentido
creo que ésta, sí, es la parte mas pesada " (Fito Paez).
Às moscas
O blog andou às moscas... eu sei. Não pude escrever nada nos últimos dias. E se volto à carga agora, é menos por vontade do que por necessidade...
"A palavra é o testemunho de uma ausência. Escrevemos, antes de tudo, para testemunhar nossas faltas, quer procurando supri-las, quer buscando carinho para aliviar a dor. Escrevemos para dizer o que não sabemos, o que não amamos, o que não somos - mas queremos".
O trecho é do livro Redação Inquieta, do Gustavo Bernado, o qual será objeto de maiores comentários tão-logo seja possível.
"A palavra é o testemunho de uma ausência. Escrevemos, antes de tudo, para testemunhar nossas faltas, quer procurando supri-las, quer buscando carinho para aliviar a dor. Escrevemos para dizer o que não sabemos, o que não amamos, o que não somos - mas queremos".
O trecho é do livro Redação Inquieta, do Gustavo Bernado, o qual será objeto de maiores comentários tão-logo seja possível.
terça-feira, 27 de janeiro de 2009
Philip Roth
Ia escrever agora sobre Philip Roth. Escrevi e apaguei três vezes o que escrevi - contrariando os princípios 1 e 2 da declaração de princípios do blog (primeiro post).
Isso quer dizer ou que não estou a fim de escrever, ou que não estou conseguindo suficientemente colocar as minhas idéias no papel, ou as duas coisas juntas, ou nenhuma delas. Na verdade não interessa muito.
Interessa o que é passional. E a minha escrita acaba sendo, na maioria das vezes, passional.
Quando a paixão arrefece, por um motivo ou outro (hoje foi um dia infernal na Ilha!), então não consigo gostar do que escrevo.
Então gostaria de entender porque não podemos sempre nos manter apaixonados por algo, melhor dizendo, viver no calor da paixão? Por que tudo esfria, perde a graça, desbota?
Se pudesse, gostaria de controlar meu nível de paixão pela vida, de modo que pudesse sempre regular a intensidade dos meus atos: mais apaixonado pro que valer mais, como escrever um poema de amor; menos apaixonado pro que valer menos, como brigar com alguém...
O que eu ia escrever sobre o Philip Roth é que os livros dele me lembram a importância de estar vivo. Ou porque contém relatos aterradores sobre a força animal das paixões e obssessões humanas (tema recorrente pra mim também...), ou porque relatam assombrosamente o fenômeno do envelhecimento, da morte, da solidão (como em seus últimos livros lançados no Brasil: O Homem Comum, e Fantasma Sai de Cena - esse último é o que estou lendo agora).
Em suma, Philip Roth escreve só sobre o que interessa mais ao ser humano: o sexo, a morte e a família (não nessa ordem necessariamente).
E em todos seus livros está a marca humana, aquela condição animal e racional de um ser que ama mas foge do amor pela razão, e que é racional mas foge da razão pelo amor...
Na real, hoje não saberia dizer exatamente como é Philip Roth, mas posso recomendar seus livros pra quem, como eu, gosta do que é humano, altamente humano, com toda fraqueza, dor, desespero, solidão e desejo que são ínsitos aos indivíduos.
Eu ia dizer também que algumas passagens de livros como o Homem Comum (o que mais me marcou, porque contribui para uma tomada de decisão em minha vida), me lembram a letra de Time do Pink Floyd (já mencionada no blog)...
...principalmente no trecho em que diz:
"You are young and life is long and there is time to kill today
And then one day you find ten years have got behind you
No one told you when to run, you missed the starting gun"
Dez anos passam rapidamente...
Isso quer dizer ou que não estou a fim de escrever, ou que não estou conseguindo suficientemente colocar as minhas idéias no papel, ou as duas coisas juntas, ou nenhuma delas. Na verdade não interessa muito.
Interessa o que é passional. E a minha escrita acaba sendo, na maioria das vezes, passional.
Quando a paixão arrefece, por um motivo ou outro (hoje foi um dia infernal na Ilha!), então não consigo gostar do que escrevo.
Então gostaria de entender porque não podemos sempre nos manter apaixonados por algo, melhor dizendo, viver no calor da paixão? Por que tudo esfria, perde a graça, desbota?
Se pudesse, gostaria de controlar meu nível de paixão pela vida, de modo que pudesse sempre regular a intensidade dos meus atos: mais apaixonado pro que valer mais, como escrever um poema de amor; menos apaixonado pro que valer menos, como brigar com alguém...
O que eu ia escrever sobre o Philip Roth é que os livros dele me lembram a importância de estar vivo. Ou porque contém relatos aterradores sobre a força animal das paixões e obssessões humanas (tema recorrente pra mim também...), ou porque relatam assombrosamente o fenômeno do envelhecimento, da morte, da solidão (como em seus últimos livros lançados no Brasil: O Homem Comum, e Fantasma Sai de Cena - esse último é o que estou lendo agora).
Em suma, Philip Roth escreve só sobre o que interessa mais ao ser humano: o sexo, a morte e a família (não nessa ordem necessariamente).
E em todos seus livros está a marca humana, aquela condição animal e racional de um ser que ama mas foge do amor pela razão, e que é racional mas foge da razão pelo amor...
Na real, hoje não saberia dizer exatamente como é Philip Roth, mas posso recomendar seus livros pra quem, como eu, gosta do que é humano, altamente humano, com toda fraqueza, dor, desespero, solidão e desejo que são ínsitos aos indivíduos.
Eu ia dizer também que algumas passagens de livros como o Homem Comum (o que mais me marcou, porque contribui para uma tomada de decisão em minha vida), me lembram a letra de Time do Pink Floyd (já mencionada no blog)...
...principalmente no trecho em que diz:
"You are young and life is long and there is time to kill today
And then one day you find ten years have got behind you
No one told you when to run, you missed the starting gun"
Dez anos passam rapidamente...
sábado, 24 de janeiro de 2009
O INFINITO EM 3D
Hoje me assustei. Conversava com um amigo meu no msn; ele me contava sobre o novo site da empresa dele; mandou o link, e eu acessei.
Vi na página inicial um logo muito bonito, um visual assim espacial, e disse pra ele: "muito legal a página inicial". Ao que ele me respondeu:
"É O INFINITO EM 3D!"
Fiquei pasmado com a afirmação. Primeiro, eu não consegui desenhar na minha cabeça o infinito; imagina só, tanta coisa, num desenho... Depois, pra agravar, eu tive de pensar no infinito em três dimensões, com altura, com profundidade, com largura...
Meu cérebro simplesmente travou.
Como meu amigo deve ter percebido a minha dificuldade em compreender o conceito, ele me disse:
"É O OITO DEITADO".
Pronto, aí piorou... Como assim, o oito deitado? O que o número oito e o infinito têm em comum?
Será o número oito o resultado da equação misteriosa que - dizem os místicos - explicaria o funcionamento de tudo que existe (acho que vi um Arquixo X sobre isso, há mil anos atrás)...
Como meu desepero ficasse evidenciado nas inúmeras interjeições que dirigi ao meu amigo, ele resolveu amainar minha angústia e mandou o seguinte link http://pt.wikipedia.org/wiki/Infinito.
Finalmente uma explicação racional: o "oito deitado", me explicou a enciclopédia, é a Lemniscata de Bernoulli, também conhecida entre os matemáticos como a representação gráfica do infinito.
Diante disso, senti duas coisas: primeiramente, alívio por ter salvo meu cérebro (já que ele provalvemente não descansaria até desenhar o infinito em três dimensões); depois, me deparei com uma dúvida: será que me ensinaram isso na escola? Alguma vez eu utilizei o "oito deitado" em alguma equação perdida no passado juvenil?
Ou eu teria faltado ao bimestre letivo em que foi ensinada essa matéria? Eu estava usando drogas à época?
Onde está minha matemática, afinal?
De toda forma, pra não me sentir solitário em minha ignorância (creio ser uma tendência natural do ser humano procurar seus defeitos nos outros), eu perguntei a uma pessoa bem chegada: você sabe o que significa o "número oito deitado"?
A pessoa respondeu: "duas pessoas transando?"
Bem, a resposta não me consolou muito, porque eu, conhecendo o espírito elevado da pessoa que respondeu, sabia que ela deveria estar brincando comigo...
Então, respondi-lhe: "não, não são duas pessoas transando, é o símbolo do infinito". E a minha interlocutora afinal confessou: "sim, eu me lembro, tive isso na escola"...
Portanto, a conclusão que tiro disso é que perdi minha matemática; não sei onde ela está.
E existe uma parte boa em tê-la perdido: é que por um breve momento acreditei que o infinito, que toda matéria e todo vazio existentes, pudessem caber num desenho, num site, numa foto, num instante.
Vou sentir saudade desse momento.
Vi na página inicial um logo muito bonito, um visual assim espacial, e disse pra ele: "muito legal a página inicial". Ao que ele me respondeu:
"É O INFINITO EM 3D!"
Fiquei pasmado com a afirmação. Primeiro, eu não consegui desenhar na minha cabeça o infinito; imagina só, tanta coisa, num desenho... Depois, pra agravar, eu tive de pensar no infinito em três dimensões, com altura, com profundidade, com largura...
Meu cérebro simplesmente travou.
Como meu amigo deve ter percebido a minha dificuldade em compreender o conceito, ele me disse:
"É O OITO DEITADO".
Pronto, aí piorou... Como assim, o oito deitado? O que o número oito e o infinito têm em comum?
Será o número oito o resultado da equação misteriosa que - dizem os místicos - explicaria o funcionamento de tudo que existe (acho que vi um Arquixo X sobre isso, há mil anos atrás)...
Como meu desepero ficasse evidenciado nas inúmeras interjeições que dirigi ao meu amigo, ele resolveu amainar minha angústia e mandou o seguinte link http://pt.wikipedia.org/wiki/Infinito.
Finalmente uma explicação racional: o "oito deitado", me explicou a enciclopédia, é a Lemniscata de Bernoulli, também conhecida entre os matemáticos como a representação gráfica do infinito.
Diante disso, senti duas coisas: primeiramente, alívio por ter salvo meu cérebro (já que ele provalvemente não descansaria até desenhar o infinito em três dimensões); depois, me deparei com uma dúvida: será que me ensinaram isso na escola? Alguma vez eu utilizei o "oito deitado" em alguma equação perdida no passado juvenil?
Ou eu teria faltado ao bimestre letivo em que foi ensinada essa matéria? Eu estava usando drogas à época?
Onde está minha matemática, afinal?
De toda forma, pra não me sentir solitário em minha ignorância (creio ser uma tendência natural do ser humano procurar seus defeitos nos outros), eu perguntei a uma pessoa bem chegada: você sabe o que significa o "número oito deitado"?
A pessoa respondeu: "duas pessoas transando?"
Bem, a resposta não me consolou muito, porque eu, conhecendo o espírito elevado da pessoa que respondeu, sabia que ela deveria estar brincando comigo...
Então, respondi-lhe: "não, não são duas pessoas transando, é o símbolo do infinito". E a minha interlocutora afinal confessou: "sim, eu me lembro, tive isso na escola"...
Portanto, a conclusão que tiro disso é que perdi minha matemática; não sei onde ela está.
E existe uma parte boa em tê-la perdido: é que por um breve momento acreditei que o infinito, que toda matéria e todo vazio existentes, pudessem caber num desenho, num site, numa foto, num instante.
Vou sentir saudade desse momento.
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fim de semana na ilha metafórica
Sexta-feira, 19h30m. O que vislumbro do fim de semana na ilha metafórica (v. o antepenúltimo post para entender) não é muito animador. Vejamos quanto tédio se pode aguentar, e a que idéias malucas isso pode me levar.
Música pra eu escutar agora: smile (Charlie Chaplin/John Turner/Geoffrey Parsons), na voz da Madeleine Peyroux, pela oportuníssima letra.
Música pra eu não escutar agora: time (Pink Floyd); sua letra altamente verdadeira e reflexiva me deixaria um pouco mal (aliás, será objeto de um post em breve).
that's all, folks!
Música pra eu escutar agora: smile (Charlie Chaplin/John Turner/Geoffrey Parsons), na voz da Madeleine Peyroux, pela oportuníssima letra.
Música pra eu não escutar agora: time (Pink Floyd); sua letra altamente verdadeira e reflexiva me deixaria um pouco mal (aliás, será objeto de um post em breve).
that's all, folks!
sexta-feira, 23 de janeiro de 2009
Para além do bem e do mal (ou o blogadicto e a espinha de peixe)
Reflexão filosófica nº 02/2009: uma obsessão pode ser uma coisa boa?
Blogadicto é um neologismo; ontem, quando pensei na palavra, até imaginei que eu seria o inventor dela... Quanta pretensão. No grande G (posso chamá-lo assim? acho que é uma apropriada denominação, pois sua onisciência e popularidade lembram o grande irmão do George Orwell), enfim, no google encontram-se 4.530 resultados para a pesquisa do termo "blogadicto".
Isso só demonstra que não há mais nada inédito no mundo, ou que tamanha é a velocidade da difusão das invenções que aquilo que ontem era inédito, hoje é popular - acho que essa última hipótese é mais razoável.
Mas, retomando a linha de pensamento, blogadicto quer dizer viciado em blog, como drogadicto. Fácil.
O que não é fácil é descobrir-se um blogadicto, e acho que estou passando por esse processo de descoberta.
Digo isso porque há três dias só penso nesse blog; não estou me arrependendo de tê-lo criado, já que seus benefícios (e falarei sobre isso em outra hora, mas já podem ir lendo "Redação Inquieta", do Gustavo Bernardo) são maiores de que seus malefícios.
Mas o fato é que estou me dando conta de que a situação está fora do controle.
Por exemplo, agora deveria estar escutando alguma canção lenta do Mellon Collie and the Infinite Sadness (v. The Smashing Pumpkins), como faço todo dia após almoçar, tentando me recuperar para o turno da tarde (sempre mais violento que o round inicial).
Outro indício de que estou me tornando um blogadicto é que a todo momento elaboro textos na minha cabeça, coisas para postar aqui... Isso até seria bom, se eu não tivesse mais nada pra fazer da minha vida.
Mas o exemplo máximo da minha iminente (ou consumada) blogadição é o seguinte: hoje, durante o almoço (trinta minutos atrás), uma pedaço bem pequeno de espinha de peixe cravou entre a minha gengiva e a parte de trás de um dos meus dentes. Tive de correr para o banheiro do restaurante. Não vale a pena contar como, quinze minutos depois, eu consegui remover a inoportuna espinha.
O fato é que não consegui mais almoçar. Não por causa da dor causada pela espinha já extraída. Mas porque fiquei pensando: qual a reflexão filosófica que posso postar no meu blog a partir dessa experiência ridícula?
Assim, como uma coisa leva a outra, estou escrevendo esse texto agora. E o que pude concluir é:
a) não há sentido a se extrair no fato de uma espinha de peixe cravar na sua gengiva;
b) as reflexões filosóficas, no meu caso particular, não devem ser "forçadas" a partir de fatos do meu dia-a-dia;
c) e, sim, estou me tornando obcecado por este blog.
A partir dessa última conclusão - de que estou mesmo viciado no blog - eu me sinto confortável para formular, finalmente, a reflexão filosófica nº 02/2009, a qual, vem em forma de pergunta: uma obsessão pode ser uma coisa boa?
Vale a pena refletir, porque - embora inicialmente nos sintamos inclinados a dizer que não, que obsessões são sempre ruins - é possível que grandes coisas sejam conquistadas a partir de obsessões.
A paixão, por exemplo, é uma obsessão socialmente aceita. Não estou falando aqui do "amor com sabor de fruta mordida" (Cazuza), mas da paixão que devora nossa mente quando nos deparamos com o objeto do nosso desejo.
Nesse caso, se a paixão for mesmo uma forma de obsessão, e se a paixão muitas vezes evolui para uma forma mais evoluída de sentimento - amor -, logo, estou a concluir que as obsessões (ao menos aquelas saudáveis, como escrever um blog, ou pintar ou escrever) podem, sim, ser coisas boas (ou nos levar a coisas boas).
Ou melhor dizendo: uma obsessão é algo além do bem e do mal, porque implica na entrega quase que absoluta de nosso ser em prol de algo que acreditamos que seja, praticamente, o sentido do instante vivivo. E quem poderia criticar isso?
Essa é, então, a minha conclusão: não julguemos as obsessões, pois não sabemos o que há por trás delas, não sabemos onde elas vão acabar, e, afinal, são formas intensas de se viver algo.
De mais a mais, não me sinto autorizado a discordar de Nietzsche, para quem: "O que se faz por amor sempre se faz para além do bem e do mal". (in Além do Bem de do Mal).
Blogadicto é um neologismo; ontem, quando pensei na palavra, até imaginei que eu seria o inventor dela... Quanta pretensão. No grande G (posso chamá-lo assim? acho que é uma apropriada denominação, pois sua onisciência e popularidade lembram o grande irmão do George Orwell), enfim, no google encontram-se 4.530 resultados para a pesquisa do termo "blogadicto".
Isso só demonstra que não há mais nada inédito no mundo, ou que tamanha é a velocidade da difusão das invenções que aquilo que ontem era inédito, hoje é popular - acho que essa última hipótese é mais razoável.
Mas, retomando a linha de pensamento, blogadicto quer dizer viciado em blog, como drogadicto. Fácil.
O que não é fácil é descobrir-se um blogadicto, e acho que estou passando por esse processo de descoberta.
Digo isso porque há três dias só penso nesse blog; não estou me arrependendo de tê-lo criado, já que seus benefícios (e falarei sobre isso em outra hora, mas já podem ir lendo "Redação Inquieta", do Gustavo Bernardo) são maiores de que seus malefícios.
Mas o fato é que estou me dando conta de que a situação está fora do controle.
Por exemplo, agora deveria estar escutando alguma canção lenta do Mellon Collie and the Infinite Sadness (v. The Smashing Pumpkins), como faço todo dia após almoçar, tentando me recuperar para o turno da tarde (sempre mais violento que o round inicial).
Outro indício de que estou me tornando um blogadicto é que a todo momento elaboro textos na minha cabeça, coisas para postar aqui... Isso até seria bom, se eu não tivesse mais nada pra fazer da minha vida.
Mas o exemplo máximo da minha iminente (ou consumada) blogadição é o seguinte: hoje, durante o almoço (trinta minutos atrás), uma pedaço bem pequeno de espinha de peixe cravou entre a minha gengiva e a parte de trás de um dos meus dentes. Tive de correr para o banheiro do restaurante. Não vale a pena contar como, quinze minutos depois, eu consegui remover a inoportuna espinha.
O fato é que não consegui mais almoçar. Não por causa da dor causada pela espinha já extraída. Mas porque fiquei pensando: qual a reflexão filosófica que posso postar no meu blog a partir dessa experiência ridícula?
Assim, como uma coisa leva a outra, estou escrevendo esse texto agora. E o que pude concluir é:
a) não há sentido a se extrair no fato de uma espinha de peixe cravar na sua gengiva;
b) as reflexões filosóficas, no meu caso particular, não devem ser "forçadas" a partir de fatos do meu dia-a-dia;
c) e, sim, estou me tornando obcecado por este blog.
A partir dessa última conclusão - de que estou mesmo viciado no blog - eu me sinto confortável para formular, finalmente, a reflexão filosófica nº 02/2009, a qual, vem em forma de pergunta: uma obsessão pode ser uma coisa boa?
Vale a pena refletir, porque - embora inicialmente nos sintamos inclinados a dizer que não, que obsessões são sempre ruins - é possível que grandes coisas sejam conquistadas a partir de obsessões.
A paixão, por exemplo, é uma obsessão socialmente aceita. Não estou falando aqui do "amor com sabor de fruta mordida" (Cazuza), mas da paixão que devora nossa mente quando nos deparamos com o objeto do nosso desejo.
Nesse caso, se a paixão for mesmo uma forma de obsessão, e se a paixão muitas vezes evolui para uma forma mais evoluída de sentimento - amor -, logo, estou a concluir que as obsessões (ao menos aquelas saudáveis, como escrever um blog, ou pintar ou escrever) podem, sim, ser coisas boas (ou nos levar a coisas boas).
Ou melhor dizendo: uma obsessão é algo além do bem e do mal, porque implica na entrega quase que absoluta de nosso ser em prol de algo que acreditamos que seja, praticamente, o sentido do instante vivivo. E quem poderia criticar isso?
Essa é, então, a minha conclusão: não julguemos as obsessões, pois não sabemos o que há por trás delas, não sabemos onde elas vão acabar, e, afinal, são formas intensas de se viver algo.
De mais a mais, não me sinto autorizado a discordar de Nietzsche, para quem: "O que se faz por amor sempre se faz para além do bem e do mal". (in Além do Bem de do Mal).
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quinta-feira, 22 de janeiro de 2009
...the future's not ours too see...
Reflexão n. 01/2008 (primeira do blog): "the future's not ours to see".
"The future's not ours to see" é um trecho famoso da letra da música "que sera, sera", tema do filme "O Homem que sabia demais" (v. wikipédia), mas pode ser encontrada, se não me engano, no filme "Em carne viva" (In the flesh?), com a Meg Ryan (bom, diga-se de passagem).
A letra, evidentemente, diz que não podemos ver o futuro, ele não nos pertence, e a vida será o que tiver de ser...
Essa música me veio à mente à propósito de uma entrevista que assisti ontem, num desses vários canais religiosos que são captados aqui nessa ilha escaldante em que resido("ilha" no sentido metafórico; escaldante: nem tão metafórico assim).
Enfim, havia esse cientista ortomolecular, cujo nome não vem ao caso (nem lembro mesmo), e explicava sobre um laboratório nos EUA para onde podemos mandar amostras de nosso sangue, via convênio com a FEDEX.
Uns trinta dias após receber a nossa amostra de sangue (e certamente um pagamento razoável), esse laboratório nos remeteria uma análise de nossos genes, com informações sobre todas as doenças para as quais temos predisposição (sem hífen, certo?).
Juntamente com esse prognóstico genético sobre o futuro de nossa saúde, nos é enviado uma indicação terapêutica para evitar a instalação dessas patologias a que estamos propensos.
A terapêutica, segundo contou esse médico na entrevista, seria absolutamente não-invasiva e não-medicamentosa, consistindo basicamente em sugestões de mudanças alimentares e de estilo de vida (aquele xalalá da prática de exercícios físicos e redução do stress - como se isso fosse assim so easy)...
Mas o fato relevante, e o que me assusta pra valer, é a constatação de que - hoje - o futuro já não é insondável; ao menos o futuro de nosso corpo. Quer dizer, já podemos, mediante uma simples remessa de um frasco de sangue pra esse laboratório (sabe-se lá se quantos outros não existem...), conhecer quase todas as doenças que nos acometerão (verbo horrível) em um futuro mais ou menos próximo.
Isso é ótimo, dirão os prudentes, pois podemos tratar com antecipação aquelas patologias a que estamos geneticamente predispostos. É o supra sumo da medicina preventiva!
Mas eu pergunto: como nos sentiremos sabendo, por exemplo, que temos 90% de chances de contrair um câncer altamente letal, daqui a, digamos, uns 10 anos?
Alguém já pensou como se sentiria? Como isso mudaria os rumos de sua vida?
Creio que não, creio que a maioria das pessoas nunca pensou nisso, já que o dólar está subindo, o Obama está inciando seu mandato, o IPI foi reduzido e, enfim, há tanto coisa pra ocupar nossas mentes...
Em suma, eis a reflexão filosófica que proponho como inaugural desse blog: o que queremos pra nossas vidas - conhecer o futuro do nosso corpo, em termos de doenças que nos espreitam mais de perto, tendo que lidar, consequentemente com a tristeza ou a alegria que daí pode advir; ou queremos gozar da ilusão de que somos livres e que nosso corpo vai aguentar nos levar até onde desejamos?
Eu não sei o que quero, mas isso me deixou bolado, e compartilho essa angústia (também nem tão grande assim) com a vasta multidão (hipérbole ou redundância?, não: ironia) de leitores desse blog.
Pra finalizar em total sintonia com o que foi escrito, recomendo - a quem por ventura ainda não conheça - o filme Gattaca, com o Ethan Hawke, que trata de uma situação que, há grandes chances, viveremos em breve: o preconceito advindo da manipulação genética, ou seja, os que são manipulados antes de nascer (e por isso são quase perfeitos) e os que são normais, como você que está lendo esse blog.
Segundo me contou hoje um amigo meu, o filme foi baseado em Admirável Mundo Novo, do Aldous Huxley, embora não tenha encontrado na rede confirmação pra essa informação (há uma boa crítica sobre o filme em http://www.telacritica.org/gattaca.htm).
Então é isso: continuarei com canção na cabeça, cantando baixinho ao me deparar com a máquina do mundo (drummond): "the future's not ours to see" - embora isso já signifique o mesmo que um dia significou...
"The future's not ours to see" é um trecho famoso da letra da música "que sera, sera", tema do filme "O Homem que sabia demais" (v. wikipédia), mas pode ser encontrada, se não me engano, no filme "Em carne viva" (In the flesh?), com a Meg Ryan (bom, diga-se de passagem).
A letra, evidentemente, diz que não podemos ver o futuro, ele não nos pertence, e a vida será o que tiver de ser...
Essa música me veio à mente à propósito de uma entrevista que assisti ontem, num desses vários canais religiosos que são captados aqui nessa ilha escaldante em que resido("ilha" no sentido metafórico; escaldante: nem tão metafórico assim).
Enfim, havia esse cientista ortomolecular, cujo nome não vem ao caso (nem lembro mesmo), e explicava sobre um laboratório nos EUA para onde podemos mandar amostras de nosso sangue, via convênio com a FEDEX.
Uns trinta dias após receber a nossa amostra de sangue (e certamente um pagamento razoável), esse laboratório nos remeteria uma análise de nossos genes, com informações sobre todas as doenças para as quais temos predisposição (sem hífen, certo?).
Juntamente com esse prognóstico genético sobre o futuro de nossa saúde, nos é enviado uma indicação terapêutica para evitar a instalação dessas patologias a que estamos propensos.
A terapêutica, segundo contou esse médico na entrevista, seria absolutamente não-invasiva e não-medicamentosa, consistindo basicamente em sugestões de mudanças alimentares e de estilo de vida (aquele xalalá da prática de exercícios físicos e redução do stress - como se isso fosse assim so easy)...
Mas o fato relevante, e o que me assusta pra valer, é a constatação de que - hoje - o futuro já não é insondável; ao menos o futuro de nosso corpo. Quer dizer, já podemos, mediante uma simples remessa de um frasco de sangue pra esse laboratório (sabe-se lá se quantos outros não existem...), conhecer quase todas as doenças que nos acometerão (verbo horrível) em um futuro mais ou menos próximo.
Isso é ótimo, dirão os prudentes, pois podemos tratar com antecipação aquelas patologias a que estamos geneticamente predispostos. É o supra sumo da medicina preventiva!
Mas eu pergunto: como nos sentiremos sabendo, por exemplo, que temos 90% de chances de contrair um câncer altamente letal, daqui a, digamos, uns 10 anos?
Alguém já pensou como se sentiria? Como isso mudaria os rumos de sua vida?
Creio que não, creio que a maioria das pessoas nunca pensou nisso, já que o dólar está subindo, o Obama está inciando seu mandato, o IPI foi reduzido e, enfim, há tanto coisa pra ocupar nossas mentes...
Em suma, eis a reflexão filosófica que proponho como inaugural desse blog: o que queremos pra nossas vidas - conhecer o futuro do nosso corpo, em termos de doenças que nos espreitam mais de perto, tendo que lidar, consequentemente com a tristeza ou a alegria que daí pode advir; ou queremos gozar da ilusão de que somos livres e que nosso corpo vai aguentar nos levar até onde desejamos?
Eu não sei o que quero, mas isso me deixou bolado, e compartilho essa angústia (também nem tão grande assim) com a vasta multidão (hipérbole ou redundância?, não: ironia) de leitores desse blog.
Pra finalizar em total sintonia com o que foi escrito, recomendo - a quem por ventura ainda não conheça - o filme Gattaca, com o Ethan Hawke, que trata de uma situação que, há grandes chances, viveremos em breve: o preconceito advindo da manipulação genética, ou seja, os que são manipulados antes de nascer (e por isso são quase perfeitos) e os que são normais, como você que está lendo esse blog.
Segundo me contou hoje um amigo meu, o filme foi baseado em Admirável Mundo Novo, do Aldous Huxley, embora não tenha encontrado na rede confirmação pra essa informação (há uma boa crítica sobre o filme em http://www.telacritica.org/gattaca.htm).
Então é isso: continuarei com canção na cabeça, cantando baixinho ao me deparar com a máquina do mundo (drummond): "the future's not ours to see" - embora isso já signifique o mesmo que um dia significou...
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quarta-feira, 21 de janeiro de 2009
aprendendo a bloggar (existe esse verbo?)
A primeira inserção é essa: não sei bloggar. A idéia me veio à mente na hora da siesta - embora esse seja o horário para desacelerar a mente, hoje, ou foi ontem?, eu tive essa revelação: fazer um blog. Mas, enfim, não sei bloggar; espero aprender com o andar da carruagem. Aliás, faço um parêntese autoreflexivo (com ou sem hífen, afinal???): acho que devo assumir o fato de que há coisas que não sei fazer, e simplesmente arriscar atingir meu objetivo, apesar de todas as chances de erro, apesar de todas adversidades, e, principalmente, apesar de todas as censuras emanadas das pessoas perfeitas e inteligentes que habitam o mundo à minha volta.
Não sei qual o tamanho de uma inserção. De fato, repito, não sei nada sobre o que estou fazendo, mas de toda forma anoto (pra mim mesmo) que estou curtindo a sensação.
Pra organizar minha nova vida, ou seja, a vida que será exposta nesse blog, faço o ESTATUTO DO FILÓSOFO AMADOR - o qual conterá regras, dirigidas a mim mesmo, of course, visando à elaboração e à manutenção desse blog.
Vem a calhar um pronunciamento solene:
"NESSA DATA DE HOJE, EU, FILOS, DECRETO A ABERTURA DESSE BLOG, O QUAL SE REGERÁ, NA SUA ELABÕRAÇÃO E MANUTENÇÃO, PELOS PRINCÍPIOS QUE SEGUEM:
1) Jamais deixar o cursor piscar por mais de 1 minuto; as postagens devem preservar a fluidez do pensamento, em prol da espontaneidade das manifestações postadas;
2) Jamais reler mil vezes cada postagem (como habitualmente faz o criador desse blog); a justificativa é a mesma usada para o item 1;
3) Não ter vergonha das informações postadas;
4) Não ter vergonha dos erros eventualmente cometidos;
5) Aceitar de bom grado as críticas eventuais (ou certas), sempre lembrando que não há consenso no mundo (felizmente).
6) Assumir esse blog como um projeto experimental e totalmente pessoal;
7) Não se importar com o fato de que, para outras pessoas, um blog seja uma coisa banal e corriqueira."
Feito isso, encerro essa primeira inserção no meu blog.
Esclareço apenas uma coisa: não ia disponibilizar esse blog ao público antes que ele estivesse completamente formatado e com algumas postagens que pudessem entreter os visitantes menos apressados.
No entanto, considerando o que consta na cláusula 4 da declaração de princípios do blog, já estou disponiblizando ao mundo, vasto mundo, o teor integral do Filósofo Amador.
Apenas ressalvo aos interessados (os que viram algo de interessante nessas palavras escritas de sopetão) que o conteúdo do blog aumentará em breve. Esse é meu desejo.
Não sei qual o tamanho de uma inserção. De fato, repito, não sei nada sobre o que estou fazendo, mas de toda forma anoto (pra mim mesmo) que estou curtindo a sensação.
Pra organizar minha nova vida, ou seja, a vida que será exposta nesse blog, faço o ESTATUTO DO FILÓSOFO AMADOR - o qual conterá regras, dirigidas a mim mesmo, of course, visando à elaboração e à manutenção desse blog.
Vem a calhar um pronunciamento solene:
"NESSA DATA DE HOJE, EU, FILOS, DECRETO A ABERTURA DESSE BLOG, O QUAL SE REGERÁ, NA SUA ELABÕRAÇÃO E MANUTENÇÃO, PELOS PRINCÍPIOS QUE SEGUEM:
1) Jamais deixar o cursor piscar por mais de 1 minuto; as postagens devem preservar a fluidez do pensamento, em prol da espontaneidade das manifestações postadas;
2) Jamais reler mil vezes cada postagem (como habitualmente faz o criador desse blog); a justificativa é a mesma usada para o item 1;
3) Não ter vergonha das informações postadas;
4) Não ter vergonha dos erros eventualmente cometidos;
5) Aceitar de bom grado as críticas eventuais (ou certas), sempre lembrando que não há consenso no mundo (felizmente).
6) Assumir esse blog como um projeto experimental e totalmente pessoal;
7) Não se importar com o fato de que, para outras pessoas, um blog seja uma coisa banal e corriqueira."
Feito isso, encerro essa primeira inserção no meu blog.
Esclareço apenas uma coisa: não ia disponibilizar esse blog ao público antes que ele estivesse completamente formatado e com algumas postagens que pudessem entreter os visitantes menos apressados.
No entanto, considerando o que consta na cláusula 4 da declaração de princípios do blog, já estou disponiblizando ao mundo, vasto mundo, o teor integral do Filósofo Amador.
Apenas ressalvo aos interessados (os que viram algo de interessante nessas palavras escritas de sopetão) que o conteúdo do blog aumentará em breve. Esse é meu desejo.
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